Há dois tipos de problemas com Angola. Um é o veneno da memória colonial, que inspira demasiadas expectativas na antiga metrópole e demasiados ressentimentos na antiga colónia. Os portugueses tendem frequentemente a pensar em Angola como o seu El Dorado; e os angolanos ainda não conseguiram deixar de tomar Portugal como um pretexto para confirmarem que são independentes. Não devemos esperar que esses equívocos se dissipem rapidamente. O refluxo ácido da velha relação colonial também irrompe de vez em quando nas relações entre os EUA e o Reino Unido, apesar de quase dois séculos e meio desde a independência americana e de alianças em duas guerras mundiais. No caso de Portugal e de Angola, só passaram quarenta e dois anos.

Mas o principal problema com Angola não é esse, é outro e muito mais tóxico: é a maneira como o relacionamento entre Portugal e Angola parece ter assentado num sistema de cooptação mútua entre as oligarquias dos dois países. Os nossos oligarcas gostam de Angola, mas na medida em que a oligarquia local lhes deixa partilhar os privilégios de dona do país e dos seus recursos, e os oligarcas angolanos, por sua vez, apreciam Portugal, mas na condição de beneficiarem das cumplicidades e dos favores que, no nosso regime, tornam a lei mais igual para uns do que para outros. Eis como os senhores de Lisboa e de Luanda conseguem sentir-se mesmo em casa quando se visitam uns aos outros. Mas dessa maneira, o pior que há em Portugal tende a reforçar o pior que há em Angola, e vice-versa.

Para a oligarquia, porém,  não é nada disso. O problema, como acontece desde que começou a Operação Marquês, é a justiça. A Operação Marquês já tinha sugerido que, nos últimos anos, os tribunais parecem ter perdido a devida reverência por governantes e banqueiros. A Operação Fizz revelou que também já não têm na devida conta os interesses superiores do Estado. Temos, aparentemente, um poder judicial que, sem a devida diplomacia, incomoda pessoas importantes em Angola. E os nossos negócios? E as nossas exportações? E, já agora, a saudável fraternidade da lusofonia? Desde quando é que a corrupção de um magistrado é razão suficiente para perturbar a nossa balança comercial?

De facto, para o tipo de intimidade que a nossa oligarquia desenvolveu com Angola, uma justiça independente e objectiva, que leva a sério a suspeita de corrupção de um magistrado, só pode constituir uma contrariedade. Mas que gostariam de fazer os nossos oligarcas? Sujeitar os juízes ao mesmo treino dos cônsules e embaixadores? Submeter os tribunais ao visto prévio do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Talvez aprendessem, não apenas a deixar em paz os antigos vice-presidentes de outros países, mas já agora, também os antigos primeiros ministros do nosso país.

Deveria haver coisas óbvias, como esta: se há suspeitas de que um magistrado foi corrompido a mando do governante de outro país, essas suspeitas têm de ser investigadas, independentemente de o suspeito ser ou não governante de outro país, mas também porque disso depende o relacionamento com esse país. E não se diga que não há precedentes na Europa: em 2017, a justiça francesa condenou o vice-presidente da Guiné-Equatorial (Estado da CPLP, aliás), naturalmente por actos praticados em França, como particular, e não na Guiné, enquanto governante.

As relações de Portugal com Angola nunca serão como as relações com outros países, porque com Angola temos uma história e uma língua em comum. Mas as relações com Angola só serão efectivas e seguras quando deixarem de ser apenas as cumplicidades e arranjos entre duas oligarquias, e passarem a ser simplesmente o intercâmbio entre duas sociedades razoavelmente reguladas.

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