O novo presidente do Brasil tem ideias “repulsivas” para usar uma expressão utilizada pela “The Economist”. A pergunta que temos de fazer é: como é que uma pessoa como Jair Bolsonaro merece a preferência da maioria dos brasileiros? Uma questão que se anda a colocar há já algum tempo. Era já essa a pergunta quando os norte-americanos elegeram Donald Trump ou quando os britânicos votaram pela saída da União Europeia. E mais recentemente nas eleições italianas. Há qualquer coisa de grave para tanta gente começar a escolher pessoas que têm ideias repulsivas, que ameaçam a liberdade individual, que desrespeitam (ou correm o risco de desrespeitar) os direitos humanos mais básicos.
Em Portugal nenhum grupo conseguiu (ainda?) concentrar as preferências de um grande número de pessoas. Mas há pequenos sintomas que nos deviam preocupar.
André Ventura, que se destacou pelo seu discurso contra os ciganos, foi a terceira força política mais votada em Loures, nas eleições autárquicas, subindo a votação de um PSD basicamente arrasado nas grandes cidades de Lisboa e Porto. Quem vive fora das grandes cidades sabe que as afirmações que André Ventura fez vão ao encontro do que muitas pessoas pensam. Claro que teve um discurso xenófobo e o diagnóstico do problema está longe de ser o que fez: aquilo que muitas pessoas pensam é que há grupos, que coincidem com o facto de alguns serem ciganos, que usam abusivamente os apoios sociais enganando o sistema. E que assim impedem que outros, percebidos como precisando mais, não tenham acesso a eles.
Mas como reagiram os políticos? Como seria de esperar: com acusações de xenofobia. Claro que era difícil reagir de outra forma, face ao radicalismo do discurso de André Ventura. Mas o que a classe política não pode fazer, depois, é ignorar que pode estar ali um problema. Podem e devem perceber que pode existir um problema de abuso dos apoios sociais que está a ser percebido nas pequenas comunidades e que é alimento da revolta das pessoas.
O livro “Hillbilly Elegy” de J.D. Vance (pode ler-se aqui a análise do New York Times e aqui uma entrevista ao autor) é um muito importante contributo para se perceber como é que Donald Trump teve tantos votos de quem é pobre. E pode ser um contributo para se perceber o que estão os políticos tradicionais a fazer de errado. No seu livro, Vance recorda-se a trabalhar numa mercearia, era um jovem adolescente, e a ver pessoas com telemóveis, com os quais ele nem podia sonhar, ao mesmo tempo que viviam de apoios sociais.
Um outro exemplo recente em Portugal é o da partilha, por um sindicato da polícia, de uma fotografia de três homens detidos, depois de fugirem do Tribunal do Porto onde estavam acusados de crimes de assalto a idosos. O mais elementar respeito, que qualquer pessoa nos merece, dita de imediato a condenação de uma fotografia destas e ainda mais da sua publicação e partilha. Mas temos a obrigação de nos questionarmos sobre as razões que levaram um sindicato da polícia a fazer isso. Como temos a obrigação – pelo menos eu como jornalista – de investigar qual foi a reacção do cidadão comum a essa partilha. E foi igualmente preocupante. Sendo verdade que a página do sindicato é gerida, o que vemos é comentários de apoio, sem qualquer reflexão sobre os direitos dos detidos.
Finalmente um último exemplo português: o do caso que está a envolver Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga, de Las Vegas. Não sendo possível retirar da equação a paixão que a maioria dos portugueses tem por Ronaldo, a reacção que boa parte das pessoas teve de absolvição do jogador português e condenação de Kathryn levou a que nem sequer percebessem que estavam a cometer o mesmo erro dos poucos que fizeram o contrário.
Permitam-me aqui que fale na primeira pessoa do singular. Andava a preparar um artigo sobre o que considerava estar a ser um exagero, se não mesmo radicalismo, do movimento #metoo. Tinha comprado o livro de Camille Paglia traduzido para português. Eis se não quando o artigo que escrevo sobre Cristiano Ronaldo é percebido, por parte de algumas pessoas que o leram, como sendo de apoio a esse movimento. O que vi, em algumas reacções ao artigo, foi uma fúria já raivosa aos sucessivos casos de acusação de abuso sexual.
E é de facto isso que parece estar a acontecer, pelo menos nos Estados Unidos. A The Economist publicou os resultados de um barómetro em que se comparam as opiniões sobre abuso sexual há um ano com as actuais e o que se conclui é que, desde que eclodiu o movimento #metoo, houve uma alteração, ainda que ligeira, contra as vítimas.
São tudo exemplos caseiros que ilustram a distância que se está a construir entre as ditas elites e a população em geral – aqui um artigo de João Miguel Tavares que vale a pena ler. Este afastamento – de quem está no poder, de quem faz jornalismo, de quem emite opinião – da realidade parece ser especialmente ameaçador nos Estados Unidos onde os dois grupos não se intersectam. Por aqui, em Portugal, ainda há intersecção de grupos, mas existem sintomas de um país que nos é desconhecido, como aquele que vimos há um ano na altura dos incêndios. Este distanciamento é ainda alimentado pelo facto de vivermos tempos muito difíceis no jornalismo. Os jornalistas conseguem cada vez menos ir aos sítios onde as coisas acontecem, entrar no país, pela falta de tempo ditada por equipas curtas.
Jair Bolsonaro tal como Donald Trump podem bem ser o grito de radicalismo, dos que não têm voz nem palco, contra o radicalismo – que muitas vezes se reduz a falta de bom senso – de alguns protagonistas políticos. O radicalismo alimenta radicalismos de sinal contrário, numa espiral que um dia podemos não controlar. Quem é mais radical? Jair Bolsonaro e as suas ideias repulsivas ou quem convida os brasileiros em Portugal que votaram nele a saírem do país? Por alguma razão tantos brasileiros escolheram Bolsonaro, o povo não é estúpido. Escolhe quem considera que resolve os seus problemas. E estão a encontrar nos radicais essas soluções. É preciso perceber porquê, é preciso encontrar soluções para as pessoas que têm sido esquecidas.