1 Parece que António Costa descobriu o amor da regionalização. O homem que não gosta, não faz e detesta que lhe falem em reformas estruturais, quer avançar com uma nova organização administrativa que implica fazer uma revisão constitucional e passar por cima de um resultado claro de rejeição desse modelo proferido por 60% dos votantes no referendo de 1998. Sabe quantos portugueses representam esses 60%? 2,5 milhões de portugueses. Mais 600 mil votos do que aqueles que o PS de António Costa obteve no último dia 6 de outubro.
Consciente que dificilmente terá o apoio da opinião pública para uma verdadeira regionalização, António Costa, claro, já começou a culpar o Presidente da República por não haver essa regionalização hard para preparar o caminho para uma versão soft. O objetivo dessa dupla estratégia do habilidoso assente na vitimização e na ação é claro: condicionar Marcelo.
Há aqui, contudo, outra questão que importa escalpelizar: porque razão Costa decidiu avançar agora com uma questão destas, quando Orçamento de Estado — que já provocou alertas da Comissão Europeia por estar atrasado — deveria ser o alvo exclusivo do seu foco?
A explicação é simples: António Costa quer dar um sinal aos militantes do PSD que Rui Rio, o seu grande aliado nesta questão da regionalização depois de a ter combatido como braço-direito de Marcelo no PSD em 1998, vai ter algumas migalhas de poder para poder distribuir pelos seus apparatchiks. Ou seja, o primeiro-ministro não se coíbe de interferir no processo eleitoral interno do PSD e oferecer um trunfo eleitoral a Rio para seduzir os sindicatos de voto dos barões laranjas sequiosos de poder.
Compreende-se bem porque razão Costa o faz. Dar a mão ao líder do PSD mais fraco dos últimos 24 anos é a melhor forma de o PS se eternizar no poder. Rui Rio é o aliado certo para qualquer socialista porque não ambiciona ser mais do que uma espécie de Rui Machete do novo milénio — uma personagem secundária, baça e um número 2 que vale menos do que alguns secretários de Estado de Cavaco.
2 E o que quer o Governo implementar? Duas ideias complementares.
A primeira ideia passa pela eleição dos presidentes da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) através de um colégio eleitoral composto por autarcas de cada uma das cinco regiões respetivas — terminando assim a nomeação do Governo para estes órgãos desconcentrados da administração central do Estado. Por outro lado, as CCDR terão ainda competências reforçadas em diversas áreas, além da gestão dos programas operacionais dos fundos estruturais europeus que já têm hoje. António Costa já garantiu que esta medida avançará no início de 2020.
A segunda assenta na eleição direta pelos eleitores dos presidentes da Junta Metropolitana de Lisboa e do Porto, como acontece com os presidentes dos governos regionais da Madeira e dos Açores. Será também criada uma assembleia metropolitana composa por membros eleitos pelos cidadãos e que “aprovará por maioria a constituição” de um Governo metropolitano, segundo o Programa do Governo.
Como o próprio socialista Manuel Machado, presidente da Associação Nacional de Municípios, assumiu ao Expresso, esta é uma “regionalização encapotada” — ou seja, é uma forma ardilosa de contornar o veto do referendo de 1998.
Mas, mais importante do que tudo, é uma reforma que só interessa ao PS e ao PSD — e não ao país — por várias razões:
- Será uma forma de António Costa e Rui Rio terem lugares para distribuir pelos seus barões. Entre os deputados das assembleias metropolitanas, os membros dos novos executivos metropolitanos de Lisboa e Porto e as negociações combinadas entre os autarcas do PS e PSD para elegerem os membros das CCDR, muitos negociações serão feitas para satisfazerem as respetivas clientelas de Costa e Rio.
- As cinco CCDR (Lisboa e Vale do Tejo, Norte, Centro, Alentejo e Algarve) sempre foram estruturas técnicas e lideradas por dirigentes da administração pública — a maior parte das vezes especialistas nas áreas da administração território e/ou dos fundos estruturais europeus. Querer que os autarcas passem a eleger o líder de cada uma das CCDR é estar a politizar um cargo eminentemente técnico e altamente especializado.
- Politizar órgãos como as CCDR, que têm a seu cargo a coordenação dos projetos operacionais para as respetivas regiões de dezenas de milhões de euros, só pode levar Portugal de regresso à desgraça dos anos 90 em que centenas de milhões de euros foram desperdiçados pela incompetência e incúria da classe política.
3 Além disso, há ainda outra igualmente decisiva: a tradicional falta de transparência do poder autárquico em Portugal. Desde o 25 de abril que as autarquias tiveram um papel importante no desenvolvimento do país, mas também criaram figuras como Isaltino Morais, Mesquita Machado, Valentim Loureiro, Abílio Curto, entre outros autarcas com problemas com a Justiça.
Ainda este fim-de-semana, um desses dinossauros autárquicos chamado Manuel Machado, só deu razões no Expresso para lutar contra qualquer espécie de regionalização. A viver uma segunda reincarnação como presidente da Associação Nacional de Municípios, o autarca de Coimbra comparou a ação da Justiça à da Inquisição na Idade Média. Pior: acusou o Ministério Público de se deixar instrumentalizar por “invejas”, “vinganças” e “querelas” políticas, muitas vezes através de queixas anónimas.
Todas estas acusações que variam entre o ridículo e a vitimização infantil, só revelam que o poder autárquico não aprendeu nada. Pior: não têm vergonha nenhuma na cara em assumir que querem continuar com as mesmas práticas quando alguns dos seus mais destacados representantes já foram presos por crimes praticados no exercício das suas funções.
Quando Manuel Machado diz na mesma entrevista ao Expresso que é contra códigos ética ou consequências políticas para os autarcas devido a investigações judiciais, por a sua “consciência” ser “o melhor juiz da minha conduta”, está tudo dito. O poder autárquico não quer ser escrutinado pela Justiça, pela comunicação social e pela sociedade. Quer se legitimar apenas pelo voto popular, sem ser incomodado pelos outros poderes constituem o sistema de check and balances de qualquer democracia ocidental.
Manuel Machado, ao fim e a cabo, quer que Portugal seja a Venezuela de Hugo Chavéz e Nicolás Maduro ou a Rússia de Putin onde o poder político é um poder absoluto.
4 Esta regionalização encapotada que beneficiará os ‘manuéis machados’ do poder autárquico não pode, obviamente, merecer qualquer apoio ou cumplicidade de Marcelo Rebelo de Sousa. É verdade que a coerência para António Costa é descartável — como Marques Mendes recordou este domingo na SIC, Costa revogou a eleição dos presidentes da CCDR quando era ministro da Administração Interna de José Sócrates — mas não pode ser para o Presidente.
Além de Marcelo ter sido o principal rosto do combate à regionalização como uma ideia que dividia (e continua a dividir) o país com argumentos muito semelhantes aos que elenquei acima, há que ter em conta outra questão.
Marcelo Rebelo de Sousa já cometeu um erro de capital ao aceitar a substituição da dinâmica procuradora-geral Joana Marques Vidal pela silenciosa Lucília Gago com o argumento falacioso do mandato único que não está explícito em lado algum da lei. Os resultados estão à vista: o enfraquecimento do Ministério Público que agora nem sequer convoca Marcelo e António Costa para testemunhas de um processo relevante como o de Tancos para não serem incomodados nas suas “altas funções”.
Aparentemente, Marcelo não quis entrar em conflito com Costa no caso do dossiê da renovação do mandato da procuradora-geral da República. Fez mal, muito mal.
Convém que agora não cometa um segundo erro capital. É que um ainda se pode aceitar, mas dois já são demais. É o que separa uma inexplicável cumplicidade de uma traição não só ao seu eleitoral, como ao seu próprio pensamento sobre o tema da regionalização.
O problema da regionalização é muito simples de resolver: independentemente de ser hard ou soft, o que foi derrotado em referendo, só pode ser revertido novamente em referendo. Nem mais, nem menos. E Marcelo sabe-o bem.
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