1 Nunca me canso de escrever sobre Mário Soares. Esta semana fi-lo com gosto uma vez mais, a ocasião reclamava-o e recomendava-o: reclamava-o por se tratar da  apresentação da reedição, a cargo da Imprensa Nacional Casa Moeda, de três livros que tive o privilégio de poder fazer com o dr. Soares. Os livros são hoje dois e não três como há trinta anos, fundidos agora em dois volumes, belíssimos, na dignidade tão cuidada da sua estética. Mas se esta reedição obviamente reclamava palavras que honrassem memórias, a figura de Soares, recomendava-o: o que ele fez, os seus combates, a sua coragem infinita, a permanente noção do lugar do seu partido no nosso xadrez partidário, o instinto, a persistência, o legado que nos deixa, são uma responsabilidade para quem participou, interveio ou testemunhou esse tempo e as suas etapas. E cada uma delas, independentemente das suas circunstancias, é sempre fornecedora de política, decisão, escolha, combate. Uma responsabilidade de cidadania, sim. Mas há outra: a de ir falando nisso, lembrando isso, discutindo isso. Fazendo render a responsabilidade.

Valeria a pena. Deixo breve contributo, este que segue e leva as palavras que disse anteontem, no lançamento destas reedições.

2 Corria o ano de 1994 e, para assinalar a passagem dos vinte anos sobre Abril de 74, propus ao meu amigo, o jornalista Vicente Jorge Silva então director do Público onde eu estava, uma série de amplíssimas entrevistas num leque incomum na sua diversidade. As entrevistas rematariam com Mário Soares. O sucesso produziu um livro – “Do Fundo da Revolução”, editado pelo Público e por ele reeditado em Abril, deste ano –, mas aconteceu que a entrevista do dr. Soares era espantosa: tão avassaladoramente política, lúcida, interessante, detalhada que percebi que tínhamos de continuar a conversar. Mas quereria ele fazer um livro – ele que também escrevia e não deixava os seus créditos por mãos alheias – com uma jornalista que nunca parara na sua morada política e partidária? É certo que os nossos circuitos se cruzavam inúmeras vezes, que não tinham conta as idas à Rua da Emenda ou ao Parlamento, os telefonemas apressados, as “cachas” ansiosas, as entrevistas, as discordâncias. As mil visitas de trabalho e sem ser de trabalho à sua casa do Campo Grande; a Nafarros; ao Alvor. Ou a concretização desse jantar na nossa antiga casa, também no Campo Grande, quando me passou pela cabeça, em Fevereiro de 1976, juntar à nossa mesa Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas Amaral e eles foram. E o dr. Soares tomou conta da ocorrência, encheu a sala e industriou os presentes a votar no general Eanes para a Presidência da República, como um imperativo salvífico.

Ou quando no dia 4 de Dezembro de 1980, pelas cinco da tarde, lhe fui pessoalmente – na qualidade de vizinha-amiga e não de jornalista – dar más noticias da campanha presidencial do general Soares Carneiro que eu fazia para o Expresso e cujo desenrolar Mário Soares estava interessado em ouvir. Mas voltando trágica e apressadamente a sua casa quatro horas depois, com o país em estado de choque com a brutal morte de Francisco Sá Carneiro ocorrida nesse intervalo de tempo. E num relance percebi que ele percebera tudo.

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Ou quando o segui profissionalmente a Moscovo em 1987, numa viagem política de antologia, tão cheia de peripécias dramático-hilariantes que eram logo partilhadas, em voz muito audível, pela sua enorme comitiva. Tão audível que, no regresso, o dr. Cunhal, com quem me avistava por vezes, não hesitou em criticar-me os comportamentos menos ortodoxos de quem acompanhara Soares. O qual encantara os seus congéneres soviéticos enquanto connosco se afligia com o que via e descobria. “Não pode durar”, dizia-nos.

Ou quando o acompanhei a Madrid nos anos noventa, para lançarmos a edição espanhola de um destes livros e eu pude testemunhar o genuíno pasmo com que o dr. Soares ouvia o brilhante elogio que lhe fazia Filipe Gonzalez, o qual quase sabia o livro de cor quando o apresentou nessa sessão, ocorrida no madrileno Hotel Palace. Sim, era verdade: o dr. Soares, mesmo gostando muito de si próprio, nunca acreditou que era maior do que julgava que era.

Podia ficar aqui até amanhã ocupada com esta cartografia de lembranças mas sim…. havia-se entretanto tecido algo de muito parecido com uma amizade entre Soares e esta escriba. Mas daí a um livro a duas mãos? Porque haveria ele, enfim, de se meter nas perguntas de uma jornalista conservadora como quem se mete dentro de um casaco cujo modelo nunca usaria? E às vezes, no auge das discordâncias, não hesitando até a confundir essa conservadora que sou com a reacionária que não era? Em suma, parecia-me uma missão impossível, Soares não precisava, nem quereria.

Não sei se precisava, mas quis. Enganara-me redondamente. O dr. Soares quis e julgo que por isso mesmo: por eu vir do outro lado das coisas – das suas, pelo menos – e preferir a direita à esquerda com a tal energia convicta. E mais: fê-lo mesmo lembrando-se que eu fora a sua casa na véspera da eleição da segunda volta da campanha presidencial de 1985 que ele ganharia a Freitas do Amaral para lhe dizer, antes do acto eleitoral, que não ia votar nele no dia seguinte, ao contrário do que, com convicto empenho e entusiasmo, eu fizera na primeira volta.

Aparentemente nada disto teve importância, nem o “não-voto” presidencial, nem o meu reacionarismo falso, nem os meus entusiásticos votos na AD de Sá Carneiro em 1979 e 1980 e depois em Cavaco Silva, sempre.

3 No dia 5 de Outubro de 1994, era um domingo, entrei no Palácio de Belém ao princípio da tarde, com um imenso lote de informação numa mão e um ramo de datas na outra, mas… que estreia aquela! É que mesmo achando que caberia ao meu interlocutor a parte de leão naquela aventura, saberia os meus vários papéis? A perguntadora teria que ser amável, atenta, persistente, perspicaz, severa, cúmplice, paciente, impaciente; astuta, belicosa, impiedosa. Tudo isto diante de alguém dotado de uma coragem gloriosa, um instinto político formidável, capaz de sedução, ambição, convicção e manipulação. Numa palavra, eu teria que ser a contraparte de uma mesma viagem, embora viéssemos de destinos diferentes.

O gravador ia registando um longo, infinito diálogo onde se ouvia uma voz ora leve, ora grave, solta ou irritada, impaciente, por vezes colérica, mas sempre, em cada situação, afectiva e interessada.

Sim, às vezes zangava-se conforme dá conta o historiador David Castãno no prefácio deste livro. Mas eu não podia deixar de continuar a perguntar. Nunca se pode deixar de perguntar. E aquela vida valia muita a pena.

Para os que acham que o país e o dr. Soares nasceram em 1974 lembro que muito antes disso já o dr. Soares fazia falar de si, relacionava-se internacionalmente, fundava um partido fora de portas: dava trabalho ao regime e combatia por outro. Começava a levar a água ao seu moinho.

Combatendo pelo valor da liberdade com a consciência de que era aí que residia a diferença a partir da qual se constrói ou se aniquila. Como voltou a fazer, no ano de 1975, com o país atrás dele pelas ruas de Lisboa e do Porto, frente a uma real e muito próxima ameaça política militar, comunista, esquerdista radical. E depois veio a Democracia e depois a Europa. O moinho tinha cada vez mais água. Mas foi esta água, a da liberdade primeiro, a do Estado de Direito e da Europa depois, as águas que sempre elegeu para levar ao moinho. E eis porventura a sua melhor definição política.

Mário Soares ia ganhando, perdendo, governando, voltando a ganhar e tornando a perder; cercado por vezes por oposições e instituições, que se uniam para o combater, e até pelo seu próprio partido com quem travaria combates impossíveis. Mas sempre com o cúmulo da sagacidade e do entendimento do que é a política: um inimigo de cada vez.

Pelo meio houve sobressalto, tensão, leviandades, erros, faltas. Mas havia, houve sempre – as vezes in extremis –, aquela sua capacidade de compreender de que lado estava o essencial e por onde passava a última linha de demarcação. Talvez por isso, certamente por isso, e para o bem e para o mal, se lhe menorizou o erro ou a falta.

E depois… um dia, o dr. Soares voltou a ganhar – à pele – no mais extraordinário combate político destes 50 anos, entrando no dia 9 de Março de 1986, num Palácio cor de rosa frente ao rio. No dia seguinte de manhã estava a tratar da concórdia nacional num Portugal dividido ao meio. Mas o país achou tão natural a sua magistratura que se reviu nela com gosto, reelegendo-o cinco anos depois, com muito mais votos ainda. Seria outra história mas o moinho já estava cheio.

4 A lenda empresta-lhe uma vida fácil. Parece. Mas só parece: provou da solidão partidária, conheceu a derrota e a traição, foi objecto de mais que um cerco político, travou lutas fratricidas. E venceu só algumas vezes.

Não fora a sua invulgaríssima coragem e a energia da sua persistência e não se sabe se teria sido exactamente assim.

E também não fora a solidíssima tessitura da sua vida familiar, a indispensabilidade da Maria de Jesus sempre ao seu lado, a certeza de que a Isabel e o João estavam ali, e também não se sabe.

Mas há uma coisa – preciosíssima – que se sabe: a vida era para Mário Soares o ar que ele respirava e lhe fornecia o oxigénio para o resto. Foi sempre a partir do apetite e da curiosidade por ela – que iam de um banho mar a uma conversa a sós com políticos que admirava no mundo de um cozido à portuguesa, da leitura de um jornal francês, ou das múltiplas viagens cujas gentes e lugares nunca o cansavam… que seguiu para o resto. Nenhuma parte desse imenso resto, será inteiramente compreendida se não se começar pelo cozido, uma ida a Paris, a animação de uma conversa com os amigos, sobre a política e os políticos.

E finalmente, estes livros não são memórias que depois se transformariam num monólogo; não são de modo algum mais entrevista. Foram uma longuíssima conversa no tempo que permanece hoje, pela memória e pelo legado.