Quando dentro de pouco mais de um mês os britânicos forem às urnas, inicia-se um ciclo que só terminará com o referendo inglês sobre a continuidade do país na União Europeia. O brexit – acrónimo de britain exit, isto é, a possível saída do Reino Unido da UE – é a espada de Dâmocles dos tempos modernos, oscilando sobre o frágil pescoço da integração europeia. O problema é que se os ingleses encaram a hipótese de abandonar a União, estas eleições voltam a evidenciar a fragilidade da situação política no Reino, com a questão escocesa presente, ainda que não expressamente, por força do peso eleitoral do SNP, o partido nacionalista escocês.

Para que não haja dúvidas: haverá quase certamente um referendo no Reino Unido sobre a União Europeia, vença quem vencer. É hoje politicamente inviável evitá-lo, seja qual for o resultado, pois os ingleses, mesmo os que se opõem à saída, já o interiorizaram e desejam (de acordo com todos os estudos de opinião). Então se assim é, o que têm as eleições de 7 de Maio de tão importante?

Na verdade, tudo. Em primeiro lugar, mesmo sem a questão europeia, estas são provavelmente das mais renhidas e imprevisíveis eleições britânicas dos últimos anos. Conservadores e Trabalhistas estão virtualmente empatados, o que aumenta a importância dos restantes partidos; e se os Liberais e os Verdes podem não vir a desempenhar papel de relevo, já o mesmo não sucede com o UKIP e, claro, o SNP, cuja importância nestas eleições se arrisca a ser grande, na esteira do grande susto pregado ao “establishment” da Grã-Bretanha aquando do referendo escocês.

Seis partidos com pretensões, distintas é certo, mas todas relevantes: eis algo muito pouco comum no sistema político britânico, que merece ser seguido com atenção, uma realidade que também espelha a insatisfação dos ingleses com a sua classe política.

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Imprevisibilidade é a palavra certa. Ninguém pode hoje saber que Parlamento terá o Reino Unido nos próximos anos e como (e por quem) será o país governado. As sondagens mais recentes mostram Conservadores e Trabalhistas muito próximos nas intenções de voto. E mostram mais: uma aparente queda dos populistas do UKIP de Nigel Farage.

O SNP é um caso interessante. De partido com uma agenda independentista, desagradável lagarta na salada feliz da união britânica, transformou-se de súbito numa borboleta viçosa que até já fala em contribuir para uma mudança positiva para o Reino Unido (palavras do seu líder Nicola Sturgeon). E pode? Bem, deve poder, a julgar pela reacção dos Trabalhistas, de Ed Miliband, que já vieram dizer que um acordo pós-eleitoral com o SNP é “nonsense” (insensato). O problema é que, no caso de um resultado equilibrado – e do roubo de um considerável número de deputados trabalhistas na Escócia por parte do SNP-, o partido de Miliband terá dificuldade em governar sem um parceiro e os escoceses podem ser o parceiro ideal.  Talvez seja a ocasião para negociar uma declaração formal de adiamento sine-die de qualquer novo referendo sobre a independência escocesa, o que desde logo seria uma enorme vitória para Milliband; mas não é certo que as sereias do poder sejam suficientemente persuasivas para fazer os nacionalistas escoceses esquecer aquela que é a sua grande visão – a independência da Escócia. Aliás, uma aliança do SNP com os Conservadores também não é de excluir; em pano de fundo, sempre, como se torna claro para quem quer que acompanhe a campanha eleitoral em curso, a ameaça da secessão escocesa.

A solução fácil e clássica para a estabilidade pós-eleitoral no Reino Unido, seria o apoio dos Liberais Democratas, mas é duvidoso que o partido consiga votos suficientes para constituir maioria com o vencedor, sejam os Conservadores ou os Trabalhistas. As previsões apontam para a conquista de menos de 30 lugares no Parlamento por parte do partido de Nick Clegg, caso em que aliás o partido deixará provavelmente de dizer-se de Nick Clegg, que não sobreviverá a uma hecatombe dessa natureza.

E por isso, SNP à parte, sobram os Verdes e o UKIP. Os Verdes ameaçam os Trabalhistas, roubando-lhes votos preciosos nalgumas circunscrições (calcula-se que em 22), mas não deverão conseguir representação parlamentar significativa, prevendo-se até que percam o único membro de que actualmente dispõem. Não serão por isso alternativa viável para qualquer tipo de coligação ou acordo pós-eleitoral.

O mesmo não sucede com o UKIP de Nigel Farage. E em caso de vitória eleitoral dos Conservadores (com os Trabalhistas está fora de questão), Farage já exigiu a antecipação do referendo sobre a União Europeia. Não é algo que Cameron exclua (na verdade, já verbalizou a possibilidade) mas resta o “pequeno” pormenor de não haver legislação que o permita. É preciso dizer que o partido independentista (o UKIP diz-se “da independência” do Reino Unido) tem tido grande importância em todo o processo pré-eleitoral, marcando a campanha ao ritmo das suas propostas, seja das anti-europeias seja até das bandeiras mais xenófobas, como as relativas aos imigrantes. A mais recente sondagem, a dar conta de uma aparente diminuição do crescimento do partido, põe alguma “água na fervura” mas não afasta o espectro de uma presença forte dos populistas e nacionalistas na cena política britânica nos próximos anos.

Próximos anos esses que serão decisivos para a Europa, a zona euro, a União Europeia. Não serão só as eleições britânicas, pois também as francesas – e a ameaça de outro populismo, este de extrema-direita – e até as alemãs (como será a era pós-Merkel?), contribuirão para moldar a União do futuro. Até lá, contudo, o que se decide no Reino Unido é crucial para o país, com as feridas do referendo escocês por sarar e o peso dos nacionalismos e da retórica anti-sistema a pesar sobre os partidos tradicionais.

É caso para dizer que, mais do que nunca, temos de estar atentos à forma como os cidadãos europeus votam e escolhem o seu futuro, cientes também de que mais do que entre a espada e a parede, a democracia ocidental sangra de muitas feridas, quase todas auto-infligidas. Mas ainda é, sem dúvida, o melhor (e mais invejado) de todos os sistemas políticos. E por isso merece ser defendido.

Professor do Instituto de Estudo Políticos, Universidade Católica de Lisboa