Nestes últimos dias, houve dois artigos publicados aqui, no Observador, dedicados ao Rendimento Básico Incondicional (RBI). Um escrito numa perspectiva ética e filosófica (de autoria de Roberto Merril e Catarina Neves), argumentando que o RBI democratiza o acesso à liberdade, e outro (da deputada Inês Domingues) numa perspectiva mais política, no sentido nobre do termo, tocando diversos assuntos, incluindo a sua exequibilidade à escala europeia. Como não há duas sem três, deixem-me acrescentar mais um artigo, este numa perspectiva mais económica, ou seja, analisando o efeito do RBI nos incentivos dos vários agentes económicos e acrescentando alguns resultados empíricos.
Vale a pena lembrar quais são as duas características essenciais desta proposta: (1) trata-se de uma transferência em dinheiro e (2) é universal, ou seja, todos recebem, independentemente de serem ricos ou pobres.
A primeira característica levanta muitas objecções entre quem tem uma visão paternalista do Estado. Afinal, os pobres são pobres porque fazem escolhas erradas e não se sabem governar. Se lhes damos dinheiro para as mãos, ainda o vão gastar em croquetes, rissóis e pão com sal. Quem pensa assim prefere que a solidariedade seja fornecida com apoios concretos (subsídio à habitação, isenção de taxas moderadoras no hospital, apoios à compra de livros escolares, etc). Mas, na verdade, há vários estudos que mostram que quando se dá dinheiro a quem precisa ele é, regra geral, bem gasto: educação, saúde, comida de melhor qualidade. Mas, na verdade, é a segunda característica que exige uma ruptura na forma como estamos habituados a pensar em solidariedade social. Que sentido faz dar à pessoa mais rica de Portugal um subsídio igual ao da mais pobre?
Um dos motivos por que tantos economistas simpatizam com esta ideia vem dos desincentivos criados pela maioria dos tradicionais apoios sociais. A maioria dos apoios sociais (desde isenção de taxas moderadores a abonos de família, passando pelo Rendimento Social de Inserção) deixa os seus beneficiários perante uma escolha perversa. Perante, por exemplo, a hipótese de aceitarem um emprego mais bem pago, arriscam-se a perder vários apoios, o que, na prática, pode levar a que o seu rendimento líquido não aumente muito. Isto é mais ou menos equivalente a um imposto sobre o rendimento tão progressivo que os aumentos salariais são totalmente comidos pelo aumento do imposto a pagar.
O argumento apresentado no parágrafo anterior pode parecer rebuscado e desligado da realidade, mas, na verdade, retrata um problema real. Não conheço nenhum estudo para Portugal sobre estes efeitos, mas, há uns tempos, li um relato sobre uma mulher nos Estados Unidos que ao mudar de um emprego de 25000 dólares por ano para outro de 35 000 (o que representa um belo aumento salarial de 40%) tinha na verdade ficado com um rendimento líquido inferior. Isto porque além de pagar mais impostos tinha também deixado de receber vários subsídios, que iam desde apoios directos ao salário a apoios para o seguro de saúde, renda e abonos. No fim, estava arrependida e queria voltar ao emprego anterior. Talvez seja difícil encontrar casos destes tão gritantes em Portugal, mas estes efeitos perversos estão sempre presentes. Imagine alguém que está a receber um subsídio de desemprego de, por exemplo, 600€ e recebe uma oferta de emprego de 600€. O ganho líquido imediato de aceitar o emprego é o de ficar com menos tempo livre. Se — e este se é enorme — os vários apoios sociais fossem todos substituídos por um RBI estes efeitos perversos desapareciam totalmente.
Neste momento, estão a perguntar como é que se financia isto. Contas por alto mostram a enormidade da tarefa, tornando-a quase utópica. Se se pensar num rendimento de 400€ por mês (mais do dobro do rendimento social de inserção) entregue a 9 milhões de pessoas, o valor total das transferências com RBI seria de 43 mil milhões de euros (mais de 20% do PIB). Isto teria de ser financiado com uma brutal redução dos actuais apoios e transferências do Estado (desde o rendimento solidário para idosos ao subsídio de desemprego, passando pela redução das pensões) e por um aumento dos impostos.
Saliente-se, no entanto, que para a maioria das pessoas que pagam impostos este aumento seria compensado pela transferência recebida. Actualmente, quem paga impostos já vê parte do seu rendimento ser transferido para outros. Com o RBI, passaria a pagar mais impostos mas também seria beneficiário das transferências. Ou seja, ao contrário do que possa parecer, esta solução não implica uma redução do rendimento líquido. Na verdade, se a medida fosse bem calibrada, o impacto directo no valor médio das transferências líquidas seria nulo.
De um ponto de vista económico, qual é então o principal risco desta medida? O principal risco é, obviamente, o de muita gente não querer trabalhar e ficar a viver apenas das transferências do Estado. Se isso acontecer, esta ideia é inviável. Como expliquei acima, para as pessoas que neste momento já usufruem de transferências sociais, este problema não existe. Aliás, o oposto acontece. Com o actual esquema de apoios sociais, há um desincentivo a procurar outras fontes de rendimento, que desaparece com o RBI.
O potencial problema surge junto das pessoas que actualmente não recebem apoios do Estado. Será que recebendo uma transferência mensal do Estado a sua disponibilidade para trabalhar não diminui? Possivelmente a disponibilidade para fazer horas extraordinárias, trabalhar ao fim-de-semana, ou até procurar um segundo emprego diminui. Afinal, o lazer é um bem de consumo como os outros e as pessoas podem querer usar o seu rendimento extra para usufruir de mais tempos livres.
Como os dois efeitos descritos acima são contraditórios, é impossível saber a priori qual o efeito final. Felizmente, já existem algumas experiências que nos podem dar alguma ideia de qual dos efeitos é dominante. Recentemente, Ioana Marinescu, professora de Economia na University of Pennsylvania, fez um apanhado de umas quantas situações.
Por exemplo, há uma tribo de índios Cherokee que tem licença para explorar uns casinos. Os rendimentos desses casinos são distribuídos por todos, dando um rendimento anual médio de 4000 dólares por pessoa. Esta transferência é independente da situação económica de cada um pelo que funciona como um verdadeiro RBI. Um estudo levado a cabo por cinco economistas e publicado no American Economic Journal: Applied Economics conclui que o impacto deste rendimento na propensão a trabalhar foi nulo. Ou seja, o efeito perverso do RBI não se verificou.
Também no Alasca há uma experiência semelhante, Alaska Permanent Fund Corporation, sendo distribuído entre os seus habitantes parte dos lucros da exploração de petróleo na região. Nos últimos anos, o valor distribuído andou entre os 1000 e os 2000 dólares anuais. Mais uma vez, não houve qualquer impacto no nível de emprego, mas desta vez houve um aumento em dois pontos percentuais do trabalho em part-time.
Os dois exemplos descritos acima dão a entender que o principal risco do RBI não se materializará de forma muito acentuada. No entanto, é preciso ter em conta que quer no caso do Alasca quer dos Cherokee o rendimento distribuído não é suficiente para alguém viver exclusivamente dele. Mas há vários outros estudos que mostram que este “efeito rendimento” é pequeno. Por exemplo, existem estudos sobre vencedores de prémios de lotaria que mostram que continuam a querer trabalhar, apesar de se terem tornado bastante mais ricos.
Concordo com Noah Smith, colunista da Bloomberg View, que diz que os dados sugerem que um valor modesto para o RBI não tem os efeitos perversos que tantos temem. Assim, caso se queira avançar com esta ideia, pode-se começar com um montante pequeno. Depois vai-se dando pequenos passos. Gradual e lentamente, aumenta-se o valor a ser transferindo e vai-se testando os seus efeitos na economia. Se, em algum momento, os efeitos negativos se manifestarem, pára-se.