(Este artigo foi escrito com Catarina Neves)

Mesmo admitindo que um Rendimento Básico Incondicional (RBI) pode ser eficaz na luta contra a chamada armadilha da pobreza e o desemprego (e estas são de facto hipóteses plausíveis que estão a ser testadas por exemplo na experiência-piloto finlandesa sobre RBI), podemos ser contra o RBI essencialmente por causa da sua incondicionalidade.

Há dois aspetos da incondicionalidade que geram mais polémica: o facto de o RBI poder ser atribuído sem condição de recursos, ou seja não está condicionado pelo rendimento que o cidadão aufere e o facto de a sua atribuição não estar condicionada à obrigatoriedade de trabalhar.

Vamos apenas concentrar-nos na discussão do segundo aspeto, isto é, no facto do RBI ser incondicional no sentido de livre de obrigações, incluindo a de trabalhar, pois este é um aspeto basilar do RBI. Esta oposição subdivide-se em dois principais argumentos:

  • (1) Argumento ético: se não é obrigatório trabalhar, então isso é imoral, já que o RBI promove modos de vida moralmente questionáveis, em particular um modo de vida de ócio e preguiça.
  • (2) Argumento político: se não é obrigatório trabalhar, então isso é injusto, uma vez que para que uns possam viver na ociosidade, outros têm de trabalhar.

O argumento ético (1) remete para uma preocupação legítima, mas com um argumento fraco, uma vez que remete para uma ideia demasiado paternalista para regimes políticos que respeitam a liberdade das pessoas de viverem como bem entenderem desde que não prejudiquem os outros. Que o argumento ético contra o RBI seja fraco não implica ser contra uma ética do trabalho na nossa vida pessoal, implica apenas que o argumento não é pertinente como refutação do RBI.

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Contrariamente ao argumento ético, o argumento político (2) é forte pois está ancorado numa conceção sobre o que é justo. É este debate público sobre o que é justo que devemos promover e não o ético. Ora é frequente que na discussão pública os dois debates se misturem, o que a torna um pouco confusa. O argumento político contra o RBI divide-se por sua vez em dois argumentos: o argumento da justiça produtiva e o argumento da justiça distributiva:

(1) Argumento da justiça produtiva:

Cada pessoa deve à sociedade a quantidade de trabalho que a sociedade precisa para funcionar e a sociedade deve a cada pessoa o que ela precisa para viver. Ora receber um RBI sem dar nada em troca à sociedade viola esta reciprocidade. Isto implica que um rendimento básico apenas pode ser distribuído em troca de uma contribuição produtiva, e sem isso, poderão existir situações de “exploração” dos trabalhadores pelos “preguiçosos”. Logo, o argumento da justiça produtiva implica a defesa de um rendimento participativo, graças ao qual cada pessoa, na medida das suas capacidades, dá à sociedade a quantidade de trabalho que a sociedade precisa para funcionar e a sociedade dá a cada pessoa o que ela precisa para viver. De acordo com esta conceção, a atribuição do RBI não é legítima, uma vez que por definição é uma medida livre de obrigações.

No entanto, podemos relativizar a posição da justiça produtiva enquanto oposição ao RBI por três razões:

  • O usufruto do ócio e de momentos de lazer não é bom apenas para ricos. O RBI permite mitigar a injustiça que existe entre as oportunidades dos ricos e as oportunidades dos pobres quando se trata de “gozar o ócio”.
  • A redução do trabalho disponível graças aos fenómenos da automação que tenderá a reduzir/reformular os postos de trabalho disponíveis.
  • O facto de o RBI eliminar ou reduzir o efeito da chamada armadilha da pobreza (já que o RBI não se perde quando se obtém um emprego), encorajando por isso à adesão ao mercado de trabalho (vs viver apenas de apoios do Estado).

Ainda que sejamos adeptos do argumento da reciprocidade e consequente ideia de um conceito de justiça produtiva que depende do nosso papel enquanto cidadãos que contribuem para o bem comum de todos, ainda assim, o RBI pode ter grandes benefícios:

  • Impede penalizar os que não trabalham por questões de doença ou incapacidade, já que nunca há erros na atribuição de um RBI, porque é para todos!
    Possibilita a remuneração de trabalho produtivo não remunerado o que impede a “exploração” daqueles que têm bons salários sobre o que trabalham em casa sem renumeração (por exemplo os cuidadores).
  • Aumenta o poder de negociação e a influência dos mais vulneráveis no mercado de trabalho. O RBI permite reduzir os efeitos da exploração dos mais vulneráveis pelos mais ricos e influentes que podem desempenhar trabalhos de que gostam e dos quais tiram prazer, porque existem outros que desempenham os trabalhos menos qualificados e mais mal pagos. O RBI contribui assim a promover a igualdade de oportunidades na capacidade de negociação.

No entanto, consideramos que a discussão sobre a justiça distributiva poderá ser ainda mais relevante face à ideia por detrás da justiça produtiva, como se as questões de justiça produtiva apenas possam e devam ser decididas quando as questões mais fundamentais da justiça distributiva forem tratadas.

Esta prioridade torna-se mais clara se atentarmos no seguinte exemplo: as riquezas que herdámos em comum das gerações anteriores pertencem a todos, e é a partir desta repartição justa das riquezas que os cidadãos estão em posição de igualdade para negociar os princípios da justiça produtiva.

Assim, só quando já existir uma distribuição justa da posse dos recursos comuns entre os membros de uma mesma sociedade, é que as pessoas podem negociar os termos da justiça produtiva, nomeadamente qual a forma de distribuir o excedente produzido graças à cooperação de todos (quer seja através de um critério de mérito, ou ainda pela incapacidade de trabalhar, por exemplo). Portanto é ao nível mais fundamental da justiça distributiva que se decide se o RBI é ou não é justo e não ao nível da justiça produtiva.

(2) Argumento da justiça distributiva:

Dito de maneira demasiado sumária, parece-nos que aquilo que a justiça deve distribuir antes de tudo é igualdade de oportunidades no acesso à liberdade. A justiça deve maximizar o potencial de ser livre – a capacidade de escolha – de todos e em prioridade a liberdade das pessoas mais vulneráveis na sociedade. O acesso a um RBI surge como uma forma de distribuir de forma mais justa as oportunidades das pessoas em serem livres, juntamente com o acesso a uma educação pública e com o acesso público aos cuidados de saúde, sendo estes distribuídos de forma incondicional.

O RBI permite que cada um tenha uma parte justa da riqueza que nos foi transmitida a todos e em comum pelas gerações anteriores à nossa, riqueza essa que ninguém na geração atual fez o que quer que fosse para obter. Uma vez feita essa distribuição justa, podemos por fim pensar na justiça produtiva, que distribui a riqueza em função do que cada um produz.

Os impostos que podem ser levantados para financiar um RBI não devem ser vistos como meios de taxar a riqueza produzida pelos produtores atuais, mas sim como meios de taxar os produtores pelo privilégio e a sorte que tiveram em utilizar para beneficio próprio riqueza que recebemos coletivamente das gerações anteriores (considerado para alguns uma espécie de pré-distribuição).

Em conclusão, um rendimento participativo justifica-se mais facilmente ao nível da justiça produtiva, embora como vimos, um RBI também se possa justificar por essa via. Mas é ao nível mais fundamental da justiça distributiva, que o RBI livre de obrigações se justifica mais facilmente, da mesma maneira que justificamos o benefício universal e incondicional à educação e saúde públicas. O RBI à luz da justiça distributiva legitima-se enquanto forma de igualar as oportunidades de todos sermos livres.

Tudo isto é muito bonito, mas trata-se de filosofia política, e mesmo convencidos da sua veracidade, a verdade por vezes não chega. Conseguir traduzi-la numa linguagem política que seja acessível a todas as pessoas e que permita gerar o debate público, isso é outra dificuldade.

Roberto Merrill é Professor Auxiliar na Universidade do Minho e Investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma universidade. É também Presidente da Associação pelo Rendimento Básico Incondicional – Portugal.

Catarina Neves é Professora Assistente na Nova SBE. É também consultora em responsabilidade social na empresa Sair da Casca.

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