Sou do Porto.

Ser portuense é ser um homem de quatro partidas, um emigrante intermitente, sempre a perseguir as suas próprias curiosidades. Ser portuense é ser sociável e trabalhador, como o esquilo em Kafka, obstinado por quebrar nozes. Ser portuense é ser pragmático e justo, para lá daquilo que são as nossas emoções. Nascer e crescer no Porto molda a nossa personalidade, de uma forma irreversível, por mais que o destino nos leve para outras paragens: “o Porto não é um lugar, mas um sentimento”, pintou Agustina, com as suas sempre sábias palavras, nos “Quadros Portuenses” de António Cruz, perseguindo-nos, mesmo quando nos tentamos fazer cidadãos do mundo. Ora, é a partir das suas gravuras, palavras e relatos – de nevoeiros e fantasmas, jardins perdidos sem nome, mulheres por vezes tristes mas sempre ofendidas, de casas ricas de fachada austera onde seguramente haverá quadros de Leonardo da Vinci escondidos, de gente que trabalha e não sonha por sonhar – que revisitei nestes dias em que celebramos mortos e bruxas, e da minha granítica personalidade portuense que condiciona a minha forma de pensar e ver o mundo, que vos escrevo um desabafo.

Desde a sua formação que sou um opositor frontal da famosa solução governativa que Vasco Pulido Valente e Paulo Portas, com forte sentido premonitório, batizaram de “Geringonça”. Para os mais distraídos, vale a pena recordar que um dos sentidos etimológicos mais comuns, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, da palavra “geringonça” é, precisamente, o de uma “coisa ou construção improvisada ou com pouca solidez”, algo que hoje nem os próprios partidos subscritores da dita serão capazes de negar.

Não obstante estar longe daquilo que são as propostas políticas dos partidos que se concubinaram na Geringonça, aquilo que me levou a recusar desde o momento inicial semelhante solução de desgoverno não foram tanto as razões de curto prazo, mas a degradação do nosso sistema político, já de si fragilizado, que se prenunciava se abríssemos a porta a desenlaces que, a despeito de visarem facilitar a construção de maiorias, apenas as viriam a dificultar.

Explicando: até 2015, para ser governo bastava ser o partido mais votado, existindo um consenso político e constitucional, da parte dos partidos, de colaborarem no sentido de viabilizar, ainda que com a sua abstenção, os diversos orçamentos de Estado, essenciais à governabilidade do país. Importa ter presente que o nosso sistema político atual desconfia dos sistemas parlamentares puros, fruto da má memória que ainda nos traz a experiência da Primeira República, e dos sistemas mais presidenciais, que de alguma forma pudessem alimentar saudosismos dos tempos da Segunda República. Por estas razões vivemos num sistema misto parlamentar e presidencial, dito “semipresidencial”, assente no método de Hondt, para precisamente valorizar a governabilidade.

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A opção por uma solução onde se abriram as portas a arranjos parlamentares, em que o primeiro-ministro indigitado pode não ser o candidato do partido mais votado e os partidos que suportam o governo podem não fazer parte da governação, sendo aparentemente uma forma de ultrapassar impasses, tinha tudo para correr mal, pois tal permite – como se viu –, em claro prejuízo de uma governação responsável e coerente, aumentar o “bargaining power” dos partidos minoritários (ou seja, o seu poder negocial, tendo por base a ameaça de bloqueio das soluções governativas). Durante os anos da cigarra de 2015 a 2019, a Geringonça exibiu os méritos aparentes dos falsos equilíbrios construídos à mesa do Orçamento, à custa do sacrifício de uma governação coerente que desonerasse a fiscalidade, aumentasse o investimento público, diminuísse a despesa, e modernizasse o país, tudo isto assente em políticas públicas coerentes. Não obstante as exigências escritas do Presidente Cavaco Silva, mais do que construir uma relação estável e com futuro, a Geringonça desperdiçou a conjuntura favorável existente em 2015 e as frágeis folgas orçamentais que a economia propiciou para transacionar legitimidade política, até ao dia em que, acabados os proventos orçamentais, se concluiu não haver, afinal, qualquer sentido de compromisso.

Não sendo o alterne político da Geringonça ilegal, à luz da constituição formal, o que hoje é óbvio para todos (e que tenho presente desde a primeira hora) é que se deu um incentivo perverso a alguns partidos de poderem capitalizar os benefícios da governação, negociando o seu voto parlamentar para servir as suas causas políticas, sem, contudo, terem de arcar com o fel e as consequências do que implica ser governo.

Escreveu Agustina que “cada pessoa e cada nação têm uma razão de ser. O Porto tem uma: é um dos poucos lugares da terra onde a humilhação de um homem, a sua queda, não dão prazer a ninguém. É doce viver onde as fraquezas são respeitadas sem impostura; com o natural das coisas, que se esperam num mundo de absurdos enganos”. Como bom portuense, não tenho nenhuma satisfação especial ao ver, hoje, concretizados os meus receios antigos, e assistir à falência estrondosa da Geringonça, que é, nas suas consequências, um falhanço pesado para um país cada vez mais falhado. Se escrevo estas linhas, é porque iremos ter em breve eleições e porque, nas minhas limitações, tudo farei para que elas venham a ser clarificadoras. Para que tal ocorra, é bom que aprendamos, rapidamente, pois o tempo não abunda, algumas lições essenciais.

A primeira grande lição que temos de retirar, para o ciclo político que se avizinha, é que, apesar da polarização existente, à esquerda e à direita, as próximas eleições e o sistema político, nos seus pesos e contrapesos, devem saber limitar o “bargaining power” dos partidos minoritários, convidando-os a criar compromissos e equilíbrios sólidos, coerentes e responsáveis.

Não me interpretem mal, não considero negativa, nem a destruição criativa em curso (que poderá fazer desaparecer do Parlamento, à esquerda e à direita, alguns partidos históricos ou epifenómenos mais recentes), nem a existência de novas ofertas partidárias, nem a reconfiguração dos equilíbrios entre as várias forças políticas. A mudança e a abertura políticas podem ser saudáveis, se servirem para destruir imobilismos e conivências, renovar a classe política, melhorar a representação e a aderência à realidade, e facilitar um ambiente de cooperação responsável, que simplesmente hoje não existe.

O clima de guerrilha que vivemos, à esquerda e à direita, porém, não prenuncia nada de particularmente entusiasmante. À esquerda, PS, PCP e Bloco de Esquerda procuram endereçar reciprocamente as responsabilidades pelo falhanço da Geringonça, na consciência de que o eleitorado irá penalizar, fortemente, os que forem percecionados como “culpados”. À direita, PSD e CDS oferecem-nos por estes dias a décima temporada das suas lutas fratricidas de baixa qualidade com que nos brindam há vários anos, convencidos, nos egos inflamados de alguns fracos protagonistas, que alguém fora da sua bolha ainda consegue ou quer acompanhar as suas supostas razões, que a própria razão há muito, já desconhece.

Como dizia Agustina, é, porém, “necessário ter aliados no espírito das coisas para se encontrar a razão delas”, pelo que, mesmo na atual cacofonia, é a partir dela e com os atuais protagonistas que teremos de organizar o nosso caminho. Ora, num tempo em que os partidos chumbam orçamentos por mera tática partidária, adiantando e adiando os calendários eleitorais internos por mera tática, insultando-se reciprocamente, exibindo com o seu comportamento uma total ausência de empatia pelos portugueses e pelas suas dificuldades, é fundamental que o Presidente da República exerça, por uma vez, com firmeza, os seus poderes presidenciais. Desde logo, marcando eleições para uma data que permita aos partidos organizar a sua oferta política, em igualdade de circunstâncias, para que os portugueses possam escolher, sem as condicionantes da pequena política em curso. Duas ou três semanas, a mais, face ao calendário desejado, de forma maniqueísta, pelos partidos, serão um bom investimento, se a eleição, com isso, for mais clara e consistente. A escolha de uma data que pense nos portugueses, e não nos partidos, será um primeiro forte sinal do Presidente, de que estará atento para assegurar a governabilidade, para lá dos meros interesses partidários. Caberá, ainda, ao Presidente exigir aos partidos, da esquerda à direita, um compromisso firme para a governabilidade, usando o tempo que lhes é dado para trabalhar pontes e acentuar nos seus programas aquilo que serão as suas soluções para o país, na consciência que, nos próximos anos, teremos, mais uma vez, que reconstruir o nosso tecido económico e social, num contexto exigente, de forte mudança e incerteza.

Cabe ainda aos eleitores, com o seu voto, valorizar os que, nos próximos meses, apresentarem as ofertas políticas mais válidas, tema que explorarei, na próxima coluna.