No dia vinte e cinco de Abril pus-me a ler um livro de Saramago e só parei no fim. Chama-se Os Apontamentos. Foi publicado originalmente em 1976 (a minha edição é de 1990) e contém os editoriais que Saramago escreveu para o Diário de Notícias de 14 de Abril a 24 de Novembro de 1975. A passagem de Saramago como director-adjunto do DN (nacionalizado) é sobretudo conhecida pelo despedimento, em Agosto desse ano, de 22 jornalistas “contra-revolucionários”. Mas vale a pena ler os textos. São um excelente exemplo de fanatismo e dão bem a ideia do que o 25 de Novembro nos livrou.
Está tudo lá. Do desprezo pela “democracia burguesa” a sarcasmos vários sobre a liberdade de imprensa, dos convites à “vigilância revolucionária” (ler: denúncia e perseguição política) ao apelo (muito compreensível, como se viu) ao voto em branco nas eleições de 25 de Abril de 1975, da ilusão delirante da importância dos avanços do “socialismo português” para o mundo à defesa do endoutrinamento forçado da população pelo MFA. E tudo, mas mesmo tudo, banhado por um ódio indisfarçável (e indisfarçado) dirigido à mínima coisa que se mexesse contra Vasco Gonçalves e o Partido Comunista. Quem quiser ter uma ideia do estado de espírito dominante no “Verão Quente”, daquele lado da barricada, ganha muito em ler estes “Apontamentos”.
Em todo o lado está o “fascismo”. O “fascismo” que se opõe ao socialismo, que é “a vida”. Uma vida que se confunde com um processo contínuo que deve ir eliminando um a um todos os obstáculos à revolução, e em primeiro lugar a quase totalidade dos partidos, que sofrem de uma absoluta falta de legitimidade. O “Povo” encarregar-se-á de levar a cabo esse processo: “O Poder desloca-se, por cima das cabeças dos políticos, para o Povo, para as massas trabalhadoras em ascensão contínua”. É essa a glória do Portugal revolucionário, a de não ceder, nesta matéria, à “via dos compromissos em que é fértil a maternal-democracia burguesa”. E é isso que nos leva (melhor: que nos obriga) à consciência de estarmos a “fazer história”: “é bom que nos habituemos à ideia de que estamos fazendo história, não apenas a nossa própria, mas também a do Mundo”. Porque somos mesmo “um exemplo para as restantes nações”, transformamo-nos “numa espécie de ponto sensível que faz com que tudo ao redor se crispe ao nosso menor movimento ou palavra”. A “Aliança Povo-MFA” é “um documento fundamental na história da Europa. Pelo menos…”
Um dos traços mais persistentes do estilo objurgatório destes editoriais é a insistência no carácter definitivo do poder revolucionário, mesmo que as ameaças se encontrem, como mandam as regras, em todo o lado. O IV Governo Provisório, de Vasco Gonçalves, é “um governo que não merece o nome de provisório”, exibe uma “militância definitiva”, é “definitivamente militante (o V, bem entendido, suscita ainda mais elogios). Quem o não perceber, precisa de explicações, e tanto a “dinamização cultural” do MFA como o próprio Saramago estão perfeitamente capacitados para nos ilustrar no capítulo. E de forma, sublinhe-se mais uma vez, definitiva: “É urgente que todos os portugueses o compreendam, que o compreendam completamente, que o compreendam definitivamente”. Tudo tem de ser entendido “de uma vez para sempre, irreversivelmente”.
E o que fazer das cabeças duras que resistem a entendimentos definitivos? Em primeiro lugar, é preciso “aprender a distinguir entre amigos e inimigos”, e a estes últimos, os que não “compreendem”, segui-los com “inflexível vigilância”, uma vigilância nunca abrandada que nos permita identificar “os traidores, os sabotadores, os provocadores de qualquer espécie e disfarce”. Temos a obrigação de os perseguir impiedosamente. Quanto mais não seja, em virtude de uma obrigação nossa, a de nos tomarmos por aquilo que somos: “Tomemo-nos por aquilo que somos: os donos de Portugal”.
Entre os traidores encontram-se obviamente os adeptos das eleições burguesas, da “falsa democracia” para a qual “metade do mundo nos empurra”. Não convém ter “ilusões sobre a natureza e fins do eleitoralismo como mecanismo político”. O “processo revolucionário” é “incompatível com esquemas parlamentares”. As divergências partidárias, “mais tarde ou mais cedo” deverão ser “confrontadas e conciliadas no trabalho socialista que é o do Povo Português”. Este é, indubitavelmente, o núcleo mais duro do pensamento político de Saramago. A democracia, tal como usualmente entendida, não só é inútil como prejudicial. Ela funciona como um obstáculo ao Bem, afasta-nos regularmente do definitivo. Dito de outro modo: não é comunista.
Citei muito, eu sei. E poderia continuar a citar por páginas e páginas. Mas é útil conhecer a letra do pensamento político de José Saramago. O seu ódio à democracia. O seu demente sectarismo político. O seu criminoso apelo à denúncia e à perseguição política. E a sua ideia, que só poderia nascer numa cabeça incapaz de perceber um milímetro do mundo, da glória universal e definitiva do gonçalvismo. Tudo isto num homem que não tinha dezoito ou dezanove anos, mas cinquenta e três. Isto é, completamente formado.
Somando tudo, não foi uma má maneira de passar o vinte e cinco de Abril: percebendo mais uma vez quão importante foi o vinte e cinco de Novembro. Embora a coisa tenha deixado marcas. Precisei, logo a partir dessa noite, de ver sete filmes de Luis Buñuel – tinha-me esquecido que ele era tão bom – para entrar em contacto com uma visão do mundo inteligente, profunda, humana e cheia de humor. Em resumo: tudo aquilo que faltava em Saramago.