Na cabeça sectária de Rui Rio, o mundo sempre foi um sítio muito simples. De um lado, está o próprio Rui Rio, um político mediunicamente ligado ao “povo” e que representa a pureza da democracia; do outro lado, estão os inimigos imaginários de Rui Rio, que, por natureza e definição, são também inimigos imaginários da democracia, da paz no mundo e da concórdia entre os povos, condição que acumulam com uma repugnante propensão para o laxismo frente à corrupção e à decadência da civilização ocidental.
Entre estes, para Rui Rio, os principais representantes de Belzebu na Terra são os polícias, os procuradores do Ministério Público, os juízes e os jornalistas. Ou seja, simplificando o que já é simplório: são a Justiça e a imprensa. Desde cedo, Rui Rio vestiu a armadura e tentou vergá-los e domesticá-los.
Quando ainda era presidente da Câmara do Porto, pediu encarniçadamente o fim da “impunidade” da comunicação social e, com o dedo estendido (não esse, o outro), responsabilizou os jornalistas por haver “cada vez menos gente na política”, uma vez que os imaculados homens bons não estavam disponíveis para serem “difamados” pelos arautos do jornalixo. Embalado, a dada altura decidiu transformar o site institucional da câmara do Porto numa arma de ataque ao Jornal de Notícias e numa forma de comunicação direta com os eleitores. Pedindo antecipadamente desculpa pelo português, a justificação era esta: “A gente, nos jornais, não vê estas coisas explicadas e é essencial que as pessoas percebam o puzzle todo”. A oposição, carente de fé e zelo, viu nisto uma utilização de meios públicos para prosseguir os objetivos políticos e propagandísticos do próprio Rui Rio — o que, como é óbvio, era efetivamente o caso.
Recentemente, Rui Rio tornou-se mais suave com os jornalistas e até decidiu reformar-se como comentador de um canal de televisão, o que, eventualmente, porá em causa a sua coerência. Ao mesmo tempo, comportando-se como uma reencarnação de Savonarola, começou a dedicar os seus sermões aos infiéis da Justiça. Quando era líder do PSD, propugnou por uma fiscalização direta da Justiça por parte do poder político. Falhado esse projeto, tem agora espalhado a teoria de que a Polícia Judiciária e o Ministério Público atuam com o objetivo de desgastar, descredibilizar e, no final, derrotar a classe política. Ainda esta semana, sem surpresa, clamou que as buscas no caso das gémeas foi apenas uma forma de a Justiça interferir nas eleições europeias, com propósitos obscuros.
Esta visão do mundo de Rui Rio assenta num equívoco. É que, para ele, a democracia é igual ao voto e a única legitimidade democrática é aquela que resulta de eleições. Talvez fosse útil alguém explicar-lhe que está enganado. As democracias liberais foram pensadas e construídas precisamente para evitar aquilo a que um pensador antigo chamou “a tirania da maioria”. A Justiça e a imprensa não dependem do voto porque o papel deles é, lá está, controlar e escrutinar aqueles que dependem do voto. Se não fosse assim, poderíamos, através do voto, ter uma mesma maioria a controlar a política, a justiça e a comunicação social, com as consequências que qualquer pessoa — exceto Rui Rio — adivinhará.
Quando divide o país entre “nós” e “eles” e entre os representantes do “povo” puro e as “elites” anti-povo, Rui Rio está a pensar e a agir como um espécime daquilo a que chamamos normalmente populismo. De facto, Rui Rio julga-se um profeta incompreendido, mas é apenas mais um populista português. A única coisa que, apesar de tudo, o distingue dos populistas é que eles, normalmente, ganham votos — e Rui Rio, como sabemos, nem isso.