A década que está à nossa frente é uma grande oportunidade para mudar o paradigma de ocupação do território. Refiro-me à convergência das grandes transições, climática, energética, ecológica, digital, demográfica, socioeconómica e laboral, na década que agora começa. Trata-se de uma verdadeira revolução: descarbonizar a economia, criar um novo mix energético, restaurar a biodiversidade, os habitats e os serviços de ecossistema, operar a transformação digital e a prestação dos serviços à distância, incentivar o rejuvenescimento demográfico e revolucionar os mercados de trabalho e emprego. No plano particular das relações cidade-campo fica, também, aberto o caminho para a 2ª ruralidade. Vejamos, então, alguns aspetos desta transição no que diz respeito ao universo do mundo rural.

1 Rurbanização, mais campo na cidade, a formação da região-cidade

Imagine o leitor, natural de um concelho rural, que a comunidade intermunicipal (CIM) de Viseu Dão Lafões adotava um modelo inovador de inteligência coletiva territorial (ICT) denominado “região-cidade”, isto é, os 14 municípios da CIM (290 mil habitantes em 2011) adotavam um modelo de federalismo intermunicipal – mais policêntrico, horizontal e cooperativo –, de tal modo, que a agricultura e o mundo rural, que antes faziam parte da sua periferia, se transformam agora num dos principais lugares centrais da sub-região, no coração mesmo da comunidade intermunicipal e um dos seus sinais distintivos mais relevantes. Esta rurbanização da região-cidade de Viseu Dão Lafões é plena de consequências sociais e económicas e tanto mais quanto este federalismo intermunicipal se propõe, igualmente, proporcionar aos munícipes uma “oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns e colaborativos” que são, em si mesmos, uma fonte fundamental de benefícios de contexto e economias de rede para toda a comunidade intermunicipal.

Agora que se discute a descentralização e a transferência de competências para os vários níveis de administração, a CIM de Viseu Dão Lafões organizaria a provisão de bens e serviços comuns fundamentais da seguinte forma:

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  • A oferta de mobilidade suave e transportes públicos intermunicipais;
  • A oferta de infraestrutura digital, rede e prestação de serviços digitais;
  • A coordenação de medidas contra as alterações climáticas e a pegada ecológica;
  • A coordenação do abastecimento intermunicipal de alimentos;
  • A coordenação da rede de cuidados continuados e serviços de apoio domiciliário;
  • A coordenação da rede de serviços culturais, lazer e recreio e terapêuticos;
  • A oferta de rede de serviços de segurança e proteção civil contra acidentes graves;
  • A oferta da rede de lojas do cidadão e outros serviços telemáticos;
  • A coordenação da rede de serviços de ensino e formação profissional;
  • A coordenação dos investimentos intermunicipais financiados por fundos europeus.

Todos estes serviços podem ser objeto de uma gestão agrupada e uma CIM pode desempenhar o papel de agente principal das economias externas e aglomeração da sub-região em benefício da respetiva comunidade. Quando referimos as comunidades intermunicipais, estamos a pensar no papel das plataformas colaborativas intermunicipais no desenho, geografia e animação do território. Seria uma pequena revolução no universo das relações cidade-campo.

2 Plano verde intermunicipal, infraestruturas verdes e serviços de ecossistema

Imagine o leitor, que vive num concelho rural, que a CIM de Viseu Dão Lafões tomava a decisão política de elaborar um plano verde intermunicipal, para colocar em rede as estruturas ecológicas municipais e desenhar para toda a CIM as infraestruturas ecológicas, a rede de corredores verdes, a reabilitação dos ecossistemas e, bem assim, a provisão eficaz e eficiente dos seus serviços de ecossistema. O plano verde intermunicipal funcionaria como um fator poderoso de mutualização de recursos comuns – serviços de ecossistema, adaptação às alterações climáticas, mitigação de riscos territoriais, preservação da biodiversidade e implementação das infraestruturas verdes – e estes, por sua vez, como um fator essencial de solidariedade política e comunitária, em caso, por exemplo, de riscos e acidentes climáticos extremos. Uma vez tomada esta decisão fundamental, estariam criadas as condições para que a CIM de Viseu Dão Lafões decida lançar o seu SAL (sistema agroalimentar local), o SAF (sistema agroflorestal), o SAT (sistema agroturístico) e o SAP (sistema agropaisagístico), assim como as redes de serviços ambulatórios e proximidade junto dos grupos mais desprotegidos e vulneráveis da população rural. Seria uma pequena revolução no universo das relações cidade-campo.

3 Mercados de futuro e startups da 2ª ruralidade

Imagine agora o leitor, que vive num concelho rural da CIM, que todos estes benefícios de rede e economias de aglomeração, criam, igualmente, condições favoráveis para fazer emergir novos mercados de futuro e outros tantos negócios empresariais e, também, muitas startups que aproveitariam o modelo ICT/plataforma digital para reunir muitos colaboradores, uma parte, nómadas digitais e trabalhadores qualificados em teletrabalho, outra parte, jovens licenciados saídos das escolas politécnicas de Viseu, Coimbra, Guarda e Castelo Branco em busca do primeiro emprego, estágio ou trabalho.

Sabendo nós que os mercados de futuro serão um mix cada vez mais complexo de tecnologia, ecologia e economia, teríamos a oportunidade de criar uma oferta conjunta de bens e serviços cada vez mais diversificada:

  • Os mercados agroecológicos, dos produtos eco e bio aos produtos biotech;
  • Os mercados do carbono, negócios dos fundos de investimento no sequestro do carbono;
  • Os mercados da água, água da chuva, da rede, águas recicladas e dessalinizadas;
  • Os mercados da biodiversidade e reabilitação de serviços de ecossistema;
  • Os mercados dos serviços de ordenamento, engenharia e arquitetura da paisagem;
  • Os mercados dos 4R: reduzir, reciclar, reparar e reutilizar e a economia circular;
  • Os mercados de nicho, denominação de origem e indicação geográfica;
  • Os mercados dos produtos não-convencionais e funcionais;
  • Os mercados da mitigação, adaptação e compensação face às alterações climáticas;
  • Os mercados da microgeração, poupança e eficiência energéticas;
  • Os mercados da prevenção, rastreabilidade e segurança alimentar;
  • Os mercados dos serviços tecnológicos e informáticos associados.

Em todos estes mercados, nós podemos assistir à emergência de empresas startup no mundo rural, por exemplo:

  • Ligadas à agricultura de precisão, inteligência artificial e robótica;
  • Ligadas à gestão de sistemas de informação geográfica;
  • Ligadas aos sistemas de controlo de pragas e doenças;
  • Ligadas aos sistemas de controlo de agriculturas forçadas;
  • Ligadas aos sistemas de produção e serviços energéticos;
  • Ligadas aos sistemas de prevenção e combate florestal;
  • Ligadas aos sistemas de controlo e monitorização meteorológicos;
  • Ligadas à bioeconomia e economia circular;
  • Ligadas às redes logísticas e serviços ambulatórios;
  • Ligadas aos serviços de teletrabalho e telemedicina.

4 A inteligência coletiva e as ações integradas de base territorial

Imagine, ainda, o leitor, que vive num concelho rural, que as plataformas colaborativas digitais nos proporcionam a criação de várias comunidades inteligentes e criativas sob a forma de ações integradas de base territorial (AIBT), envolvendo grupos de ação local, associações de desenvolvimento local, escolas superiores e centros de investigação, algumas delas fornecendo, mesmo, ambientes digitais adequados às incubadoras empresariais, espaços de coworking e laboratórios colaborativos.

As ações integradas de base territorial (AIBT) são excelentes campos laboratoriais e fonte de experiências muito enriquecedoras, por exemplo:

  • O ordenamento das áreas periurbanas e suburbanas projetadas pela smart city;
  • O parque agroecológico intermunicipal e as quintas pedagógicas e terapêuticas;
  • O planeamento das comunidades locais de energia renovável;
  • A floresta de uso múltiplo e as áreas integradas de gestão paisagística;
  • Os parques naturais e suas amenidades paisagísticas;
  • Os condomínios de aldeia;
  • As áreas de regadio e as áreas comuns das cooperativas agroindustriais;
  • Os centros operativos tecnológicos e os laboratórios colaborativos;
  • A gestão de um banco de solos e/ou de alojamento local;
  • As Zonas de Intervenção Florestal (ZIF);
  • As áreas de acolhimento, incubação e coworking, para jovens empresários rurais.

5 Neorurais e 2ª ruralidade

Imagine, finalmente, o leitor que, na decorrência de todos os benefícios de contexto e rede anteriores, se verifica uma espécie de “regresso às origens” por parte de muitos trabalhadores recém-aposentados, jovens trabalhadores qualificados em regime de trabalho independente e de teletrabalho, mas, também, de muitos neorurais de proveniências muito diversas, nacionais e estrangeiros, em busca de novos modos e estilos de vida. E, porventura, talvez mais significativo, esta fertilização de gente jovem e menos jovem, nómadas digitais e neorurais mais radicalizados é de tal modo surpreendente que passamos a referir esta convergência de fatores favoráveis como uma nova ruralidade, uma 2ª ruralidade.

Com efeito, para estes mercados do futuro é preciso sensibilizar e mobilizar toda a gente. Os “amigos do campo” são cada vez em maior número, cruzam o espaço em todas as direções, falta ainda saber se é possível mobilizá-los para empreender e agir em espaço rural.  Eis alguns “amigos do campo”, os neorurais do próximo futuro, da 2ª ruralidade:

  • Os “startupers” tecnológicos para quem o campo cabe dentro de uma “app”;
  • Os “nostálgicos românticos”, para quem o campo é um campo de recordações e evocações;
  • Os “peri-urbanistas pendulares”, para quem o campo é uma suave recarga para as dores do dia;
  • Os “ecologistas militantes”, para quem o campo é o campo das grandes causas;
  • Os “turistas da natureza”, para quem o campo é uma “experienciação” inesquecível;
  • Os “caçadores reservistas”, para quem o campo é uma oportunidade para o free raider;
  • Os “desportistas radicais”, para quem o campo é uma experiência plena de emoções fortes;
  • Os “paisagistas do ordenamento e conservação”, para quem o campo é um mosaico ecossistémico;
  • Os “agricultores integralistas”, para quem o campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica;
  • Os “patrimonialistas da cultura”, para quem o campo é um repositório de histórias e mistérios;
  • Os “sequestradores de carbono”, para quem o campo é um depósito precioso e um investimento;
  • Os “consumidores funcionalistas”, para quem o campo é um repositório de dietas e mezinhas;
  • Os “arquitetos da sustentabilidade”, para quem o campo é uma fonte de materiais e bioregulação;
  • Os “prosumidores de energia”, para quem o campo é uma fonte inesgotável de recursos renováveis;
  • As “famílias de recolhimento”, para quem o campo é espiritualidade e um projeto de vida.

Notas Finais

Em resumo, estamos, doravante, perante uma nova gramática das relações cidade-campo feita de federalismo municipal e região-cidade, oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns, plano verde intermunicipal e mutualização de recursos, mercados de futuro e criação de startups, ações integradas de base territorial, neorurais e 2ª ruralidade.

Estaremos, no futuro próximo, imersos num outro paradigma de ocupação do território, pelo que já não farão sentido algumas das categorias intelectuais e ideias dominantes que nos regeram nas últimas décadas, por exemplo, o estigma social ligado ao campo, o sacrifício da extensão rural no altar do mercantilismo químico-mecânico, o produtivismo monofuncional e superespecializado, as múltiplas dicotomias urbano-rural, fonte de inúmeros mal-entendidos, o progresso identificado com o êxodo e a urbanização, a desqualificação do capital social no rural profundo e o academicismo sobranceiro e conservador das instituições de ensino superior.

Num país tão pequeno como Portugal, tão bem servido por infraestruturas de transporte e comunicação, o problema principal não será o “repovoamento e o stock populacional” de zonas de baixa densidade, mas, antes, a organização virtuosa da mobilidade e do fluxo de população e a sua topoligamia, isto é, a montagem imaginativa e eficiente de uma economia de rede e visitação no território, concebido como território-rede colaborativo baseado em serviços itinerantes e polivalentes, que a tecnologia das redes e plataformas pode facilmente imaginar e montar, de tal modo que, cada um nós, estará “casado” com vários lugares da sua preferência.

Creio que, no próximo futuro, a caminho da 2ª ruralidade, a novidade mais importante talvez seja a emergência da sociedade colaborativa e a economia da partilha assentes numa grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais. Na 2ª ruralidade, os neorurais vindouros e as suas startups terão aí um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje. A “internet das coisas” estará presente, desde a agricultura de precisão até à silvicultura preventiva. A agricultura acompanhada pela comunidade (AAC) e a gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas será uma realidade, a economia da partilha e as boas práticas da economia circular serão uma realidade face aos recursos ociosos, a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão uma realidade. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.