“Se os livros de História contassem mais vidas de santos e menos vidas de piratas, o mundo seria muito melhor” – a afirmação é de Monsenhor Marco Frisina, mestre capela da catedral de Roma, reitor da Igreja de Santa Cecília e professor da Universidade Pontifícia Lateranense, na apresentação do livro “Mártires e santos, no centro da História. Do Vaticano II à Gaudete et exsultate”, na Universidade de São Dâmaso, em Madrid, no passado dia 25 de Outubro (Infovaticana, 26-11-2021).

Na apresentação da sua obra, o Professor López Peñalba reconheceu que a mesma constitui uma salutar ‘provocação’. Decerto, num tempo em que a Igreja é sobretudo notícia pelos piores motivos, evocar estas glórias do catolicismo pode parecer um grande atrevimento.

Contradizendo os que crêem que a fé se opõe à razão, este professor universitário afirmou que “todos os santos são teólogos”, como também os melhores teólogos são os santos. Decerto, o amor a Deus, que sobretudo caracteriza os santos, implica um intenso conhecimento da divindade que, por sua vez, suscita uma maior devoção. Como disse o Cardeal Ratzinger, o teólogo é como o montanhista que, pela razão, escala penosamente o cume da montanha, onde o místico acedeu pela via da contemplação: ambos chegam à verdade, mas por caminhos diferentes.

López Peñalba recordou que foi sobretudo o Concílio Vaticano II que difundiu o chamamento universal à santidade. Como exigência evangélica, este princípio sempre fez parte da doutrina católica embora, na prática, se considerasse que só os que optavam por uma especial consagração religiosa podiam alcançar a perfeição da santidade. Mesmo os que, na teoria, admitiam a santificação dos leigos, entendiam-na sobretudo à imagem e semelhança da vida religiosa. Só no século XX surgirão, no seio da Igreja, instituições que promovem a santidade laical, através da santificação da família e dos próprios deveres, já não entendidos como um obstáculo para a perfeição evangélica, mas como caminho para a prática das virtudes cristãs e para o apostolado.

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Para uma maior consciencialização do conciliar chamamento universal à santidade, teve especial importância o longo pontificado de São João Paulo II, que procedeu a 1.341 beatificações e 482 canonizações, muitas delas de fiéis que viveram no mundo e aí se santificaram, seguindo o exemplo dos primeiros cristãos. Também Bento XVI, nas suas catequeses semanais, evocou muitas vidas de santos, favorecendo o seu maior conhecimento e promovendo a sua imitação, não tanto no que é circunstancial e histórico, mas no que é essencial e perene, ou seja, na sua identificação com Cristo. A ambos tem dado continuidade o Papa Francisco, nomeadamente com a sua já referida exortação apostólica Gaudete et exsultate, Sobre a chamada à santidade no mundo actual, de 19-3-2018.

Mons. Frisina, por sua vez, relacionou o chamamento universal à santidade com a criação: “Fomos criados por Deus e este facto permite-nos perceber que somos chamados à santidade, porque fomos, de facto, criados à imagem e semelhança de Deus”. E, como liturgista, recordou que “a liturgia não é apenas um rito, mas participar na santidade de Deus.”

Se o convite a imitar a perfeição divina – “Sede pois perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5, 48) – pode assustar as criaturas humanas, também é verdade que os santos foram homens e mulheres com defeitos que, com o auxílio da graça de Deus, souberam ultrapassar: “é maravilhoso que os santos, como nós, estejam cheios de defeitos. A diferença é que eles abriram os seus corações à graça. Esta é a força e o assombro que provoca em nós a vida dos santos”. Para o professor da Universidade Pontifícia Lateranense, os santos “são focos de luz, archotes que iluminam a vida. A vida dos santos é assombrosa, e eles próprios são os primeiros que se assombram com que o Deus neles realiza.”

É verdade que uma certa hagiografia cristã tende a sublimar tanto a excelência da virtude dos santos que, por vezes, parecem seres mais celestiais do que humanos. No entanto, o Evangelho, que é palavra de Deus, apresenta os santos como seres normais, por vezes inicialmente mais pecadores até do que o comum dos mortais. Com efeito, Simão Pedro negou por três vezes Jesus, depois de ter jurado que nunca o faria (Mt 26, 33-35). De Maria Madalena, diz a Escritura (Lc 8, 2) que foram expulsos sete demónios: sendo sete o número da perfeição, deve ter sido uma perfeita endiabrada… Santo Agostinho teve um filho de uma mulher com quem nunca casou e foi posto fora de casa por sua mãe, Santa Mónica! E, por último, o bom ladrão publicamente reconheceu que ele e o outro ladrão, ao contrário de Jesus, tinham sido justamente condenados (Lc 23, 39-43).

Também agora, segundo o mestre capela da catedral romana, abundam os santos: “hoje em dia existem muitos mártires e temos necessidade de os dar a conhecer. A Igreja de Madrid, como a de Roma, é uma Igreja de mártires”. Sem dúvida, nos primeiros séculos da era cristã, foram inúmeros os cristãos que foram perseguidos e mortos pelas autoridades imperiais, como atestam as catacumbas romanas. Também a guerra civil espanhola ocorreu no âmbito de uma impiedosa perseguição religiosa, de que foram vítimas 12 bispos, 4.184 sacerdotes e 2.663 religiosos, num total de 6.859 consagrados. Segundo o historiador Hugh Thomas, “em nenhuma época da História da Europa e, provavelmente, do mundo, se manifestou um ódio tão apaixonado contra a religião”.

Talvez nunca como agora os cristãos foram perseguidos por razão da sua fé. São-no na China, na Coreia do Norte e no Paquistão, onde Asia Bibi esteve, durante anos a fio, no corredor da morte, pela simples razão de ser católica. Também na Europa os cristãos são atacados, de forma mais discreta, mas não menos cruel. Com efeito, segundo o Ministério do Interior francês, em 2017 registaram-se 1.038 actos anti-cristãos – desde graffitis até incêndios de igrejas e homicídios de sacerdotes, como o do Padre Jacques Hamel, assassinado a 26-7-2016 – que, no ano seguinte, ascenderam a 1.063.

“Nós, que somos aprendizes de cristãos, devemos afirmar a primazia de Deus na nossa vida e é isto o que devemos testemunhar: que Deus é o primeiro e o princípio”. Esta é, afinal, a grande lição dos santos e dos mártires. Muitos destes não só sofreram a morte como a acolheram com cânticos, expressão da “imagem de Deus que têm no seu interior” e a que, graças ao seu martírio, “é dada à luz e resplandece”.