Não poucas pessoas vão dizendo que Putin está a perder. São praticamente tantas como as que asseguram que Putin está a ganhar, e que caso não ganhe nos próximos dias vai acabar por reduzir a Ucrânia a cinzas. Há também quem assegure que esta pode ser a inflexão que faltava à ressurreição europeia, ao fortalecimento da União, à coesão dos povos do velho continente, depois da solidariedade demonstrada para com os ucranianos e da pressão das opiniões públicas sobre as lideranças europeias, que se viram forçadas a reagir com mais vigor do que era previsível. Há quem garanta que o Ocidente já está a ter vitórias: ganhou uma pátria ocidental no povo ucraniano, ganhou a nova vida da NATO, ganhou momentos de unanimidade europeia e das suas populações.
Sei, por princípio, que devo hesitar no optimismo. Desconfio das reacções futuras de boa parte dos europeus relativamente aos seus líderes políticos quando o cenário económico, financeiro e social for aquele que se adivinha. Não sendo eu jornalista, nem especialista, nem analista, nem comentador, resta-me assumir alguma ignorância: não sabendo sequer quantos quilómetros separam Kiev de Moscovo ou que tipo de artilharia têm ucranianos e russos, o mais que posso é acompanhar tudo isto com interesse e preocupação, tentar perceber alguma coisa do que se está a passar do lado de cá, onde não estamos a fugir de bombas e tiros, e praticar o que as minhas limitações me permitem em prol dos outros.
O mundo, ou pelo menos a sua parte ocidental ou ocidentalizada, não esteve para acabar com a emergência financeira, mas dizem que andou lá perto com a pandemia e a emergência sanitária que nos ia matar a todos – excepto àqueles que ainda estão a comer o arroz e a usar o papel higiénico que compraram em Março de 2020. E agora está mesmo para acabar por causa da guerra nuclear – que aparentemente só vai salvar as pessoas que foram a correr comprar comprimidinhos de iodeto de potássio, esgotando os stocks nas farmácias. Embora também haja quem garanta que, independentemente do resto, o mundo já ia acabar de qualquer forma em 2030 por causa da emergência climática.
Estarei talvez a ser injusto, mas tenho a impressão de que boa parte do mundo que lê jornais e vê entretenimento informativo nas televisões está com a vida suspensa, à espera do fim dos tempos, com uma bandeirinha no perfil das redes sociais e a lamentar-se do horror que é viver nestes tempos, com muitas saudades do passado. A outra parte está a fazer o que pode: continua a levar por diante os seus projectos de vida, de carreira, de sobrevivência, ou, nos exemplos mais dignos de entre nós, a fazer trabalho voluntário com os pobres, os refugiados, os marginalizados, enfim, ajudando a salvar o mundo na medida do que lhes é possível em termos práticos.
É muito comum dar-se o exemplo da banda do Titanic para fazer troça de quem está a ignorar o que se passa à sua volta. Sucede que os músicos, que teimavam em tocar enquanto a multidão corria desesperada à procura de um bote, não estavam a ignorar o que se passava: estavam a fazer o que podiam dentro daquilo que lhes competia. E quando terminaram a sua função, foram então ordeiramente procurar uma forma de salvar a sua própria vida. É bem sabido que o filme não é genial, mas aquele momento envolve um simbolismo interessante. E é muito curioso que muitas vezes ele seja visto como algo risível e não como sinal de decência, de coragem e, sobretudo, do óbvio: nós só podemos fazer o que está ao nosso alcance.
Já é um fardo demasiado grande para aqueles que se viram forçados a fugir de uma invasão ilegal, ilegítima e imoral, e para aqueles que estão há semanas debaixo de fogo a combater pelo seu país. Por isso era bom que do lado de cá, onde os preços sobem, mas as bombas não rebentam, que, mesmo a bem de todos aqueles que aqui chegam vindos de um país em guerra e invadido, se volte a olhar para a frente e se saia deste quadro mental que é o da vida suspensa. Que se volte a ter ambição, expectativa, exigência para connosco próprios e para com os outros, de modo que tempos difíceis sejam suportados com a maior decência colectiva possível e que se prevejam novas linhas no horizonte. Do que mais sinto falta é de sentir à minha volta mais saudades do futuro. Há gente na Ucrânia a lutar por um e convinha que nós não ficássemos parados a olhar. Enquanto as sociedades parecem paralisadas com os olhos no passado, as lideranças políticas parecem igualmente estáticas, à espera que as coisas se resolvam sozinhas. É que o mundo não está para acabar – e se por acaso eu estiver errado, também não ficará cá ninguém para mo dizer.