Os tempos estão mais para cumprir ordens do que para as questionar. Na verdade, não estou absolutamente seguro de que uma sociedade como a nossa – e a sociedade ocidental, em geral – tenha ainda capacidade para questionar seja o que for de forma racional e não sentimental. Não estou certo de que sejamos, enquanto colectivo, capazes de reagir para lá do sensacionalismo provocado por órgãos de comunicação social também eles viciados em sentimentos, em reacções instantâneas, em indignações fortes e breves, e por governos afundados, aqui e por todo o lado, em corrupção, em nepotismo, em decadência moral, e altamente ameaçados por movimentos políticos que prometem muito músculo, muita força bruta e muita pureza. Sociedades que vivem há décadas sem passar por uma grande contrariedade, um conflito, uma dificuldade social ou económica vivida colectivamente, conjugadas com este estado dos media e dos governos democráticos não podiam responder a uma pandemia provocada por um vírus tão comum como tantos outros da forma como tantos e tantos cientistas têm afirmado ao longo do último ano e meio: aprendendo a viver com ele.
Viciados no risco zero, no permanentemente belo e jovem, mais preocupados com icebergues do que com o vizinho do lado, parece que, por fim, aceitámos tudo aquilo que os governos democráticos, ou assim descritos, nos propuseram para defender a saúde pública, com base num único pressuposto: a ideia infantil de que é possível eliminar o risco. Imagine o leitor o mesmo cenário há 30 ou 40 anos: com a mancha sanitária e social que foi a SIDA, aquela sociedade sobreviveu com normalidade e nunca ninguém foi proibido por qualquer Estado de manter relações sexuais com quem lhe apetecesse e da forma que melhor lhe soubesse. Mas os tempos são outros. E mesmo que sejam mais susceptíveis de criar cumpridores de ordens de governos que nos convenceram de que nos estão a salvar, ainda são tempos para fazer perguntas – pelo menos para já não estamos proibidos de as fazer, ficamos apenas com a pouco saudável sensação de que uma multidão de “crentes na ciência” (ao contrário dos “negacionistas”) fica com a breve mas furiosa necessidade de nos queimar ali para os lados da Praça do Comércio num domingo soalheiro, se garantida a distância social, como lhe chamam.
Morreram mais de 17 mil pessoas em ano e meio e continuamos sem saber qual o perfil da vítima da doença. Acima ou abaixo da esperança média de vida? Com mais de duas doenças graves e em estado terminal, ou não? Há um perfil de doente a proteger ou ainda estamos na narrativa dos telejornais, que alertam a cada hora para a possibilidade de morrermos todos para a semana?
Há um ano disseram-nos que nos íamos fechar em casa por duas semanas para o SNS ter tempo de se fortalecer. O Governo já teve tempo suficiente, ou ainda precisa de mais duas semanas? Os ventiladores que iam chegar naquelas duas semanas sempre chegaram? Quanto custaram? De onde vieram? Estão a funcionar? Quantas camas, quantos médicos, enfermeiros e auxiliares foram contratados a mais no último ano e meio?
As vacinas com que se estão a vacinar milhões de pessoas foram aprovadas da mesma forma que todas as outras vacinas que (e bem) tomamos, ou não? Se as vacinas, porventura, foram aprovadas sem cumprir todos os protocolos por razões de “emergência sanitária”, conhecem-se todos os efeitos secundários que as mesmas podem provocar, ou não, a médio e longo prazo? Se sim, quais são? Se não, porque é que se está a obrigar o país inteiro a tomar a vacina? Porque é que a ausência de risco zero da vacina é aceitável e a ausência de risco zero da doença é intolerável? Porque é que se diz que a vacina não é obrigatória se quem não a toma fica impedido de exercer direitos e liberdades básicas, sabendo, por exemplo, que algumas partes do globo não o fizeram? Porque é que a vacina oferece aos seus beneficiários um certificado sanitário se depois continuam a ter de usar máscara, escafandro, álcool gel, distância física e de fazer testes para ir tomar a bica? Porque é que um vacinado tem de se isolar se está saudável e vacinado? Serve para quê, afinal? Porque é que o CDC americano veio dizer explicitamente que todos os vacinados podem fazer tudo em plena liberdade e nós não? Porque é que se fala em vacinar populações a 100%, incluindo crianças e jovens, sem que se conheçam os efeitos totais da vacinação? Alguém sabe ou perguntou qual é a percentagem de mortos abaixo dos 18 anos que faça justificar o recurso a estas vacinas numa camada da população que nem sequer pode escolher? E as 13 mil crianças que há um ano se sabia que tinham ficado sem vacina contra o sarampo por causa do lockdown? Já receberam a vacina respectiva ou essa deixou de ser importante?
Porque é que nós sabemos praticamente desde o primeiro dia que a doença era gravíssima em idosos, especialmente aqueles que tinham outras complicações de saúde associadas, e o que fizemos foi ficar a ver esses mesmos idosos a morrer nos lares e decidimos fechar populações saudáveis em casa? Porque é que deixámos morrer velhos nos lares, muitos deles ilegais, e ao mesmo tempo permitimos que uma geração de crianças perdesse praticamente dois anos do seu percurso escolar e do seu crescimento saudável? Já sabem quantos lares ilegais há em Portugal? O que fizeram no último ano e meio para resolver o problema dos cuidados oferecidos à velhice? Que planos sanitários foram criados para prevenir eventuais focos da doença nos lares? A ministra da Saúde chegou a dizer que os lares tinham de criar os seus próprios planos de resposta. O que foi feito ao longo dos meses para evitar a desgraça que se viu?
Porque é que o vírus ia ver os jogos da primeira liga de futebol (daí não haver público nos estádios portugueses há ano e meio) e não ia aos concertos no Campo Pequeno? O vírus não gosta do Bruno Nogueira e adora bola? Porque é que a variante delta não passa de Vila Franca nem vai a Tróia de barco aos fins-de-semana, se afinal ela só gosta de andar na rua entre as 23h e as 5h, pela fresca? Porque é que os encontros na rua estiveram limitados a determinado número de pessoas se podíamos ir ao supermercado todos ao mesmo tempo? O vírus não vai às compras? Porque é que se exigem testes e medidas de distanciamento para ir a casamentos, baptizados ou eventos culturais, se acabamos todos ao molho nos autocarros, no metro e nos comboios? Já agora: a oferta de transportes públicos aumentou para evitar ajuntamentos ou manteve-se tudo na mesma ou pior, para andarmos todos mais aconchegados? E porque é que as pessoas que acham que este tipo de medidas faz sentido são tidas como cumpridoras e “crentes na ciência” e um tipo que as ache estapafúrdias é considerado meliante, chalupa, anti-vacinas e primo do bruxo de Fafe? Porque é que toda a gente aceita que as polícias acenem permanentemente com o bastão sem legitimidade legal que sustente condutas como aqueles espancamentos a miúdos que estavam na rua?
Porque é que, pela primeira vez desde que há sistemas de saúde, nós acreditámos que tínhamos vindo ao mundo para salvar o SNS, em vez de acharmos que era o SNS, pago com os nossos impostos e gerido por gente que nós elegemos, que tem o dever de fazer tudo o possível para nos salvar a nós? Porque é que nós toleramos canais públicos de denúncia de comportamentos alheios?
Porque é que o discurso de defesa da Constituição foi abandonado, agora que falamos em direitos e liberdades básicas e não em salários? Porque é que o Governo invoca, em Junho e Julho de 2021, um pretenso “estado de calamidade”, quando o SNS está muito abaixo dos níveis a que esteve em Janeiro, e quando em Janeiro até esteve abaixo do que esteve no mesmo período de 2019? Qual é a calamidade, quando desde Fevereiro a mortalidade global do país está dentro ou mesmo abaixo da média dos últimos dez anos? Se não está a morrer mais gente do que é normal, se os serviços de saúde não estão sequer perto dos seus períodos mais críticos, que calamidade estamos nós a viver? Porque é que os infectados, mesmo que sem sintomas, se tornaram mais importantes nas narrativas do Governo e da comunicação social em vez dos mortos? Podem dizer-nos qual é a taxa de positividade de Junho de 2021 e do mesmo período do ano passado? Se estamos a fazer mais testes e se a percentagem de positivos é menor que a de Junho de 2020, o que é que explica a “escalada da variante delta”? Alguém sabe o que aconteceu à variante delta na Índia? Subiu, teve um pico e desceu como todas as variantes ou já não há indianos?
Porque é que o Conselho Nacional de Saúde Pública nunca mais reuniu? Isto é ou não é um problema de saúde pública? E o CNSP não tinha de ser ouvido antes de ser decretado o estado de emergência? Porque é que nomes como os de Jorge Torgal ou Fernando Nobre passaram a ser tratados como ignorantes? Porque é que os médicos convertidos em pop stars televisivas nos alertam mensalmente para o caos do SNS e para o fim do mundo que aí vem? Será porque o SNS é de facto um caos, é-o há muitos anos, e estão a aproveitar os tempos para reivindicar condições que até mereciam antes, ou porque o SNS só entrou em colapso com a pandemia? Porque é que milhões de consultas, milhares de cirurgias, de diagnósticos, tudo por fazer, não têm interesse nenhum? Porque é que a saúde pública foi substituída por uma política que trata uma só doença como a única de que é proibido morrer e ignora todas as outras?
Será que 400 mil novos pobres chegam para percebermos o buraco em que nos metemos ou temos de esperar mais uns tempos para que os governos, este e outros, vejam por uma vez a sua legitimidade reforçada, os seus poderes redobrados e a miséria a crescer por todos os lados? Porque é que já aceitámos dividir a sociedade, por causa de uma doença, entre bons e maus, entre puros e impuros? Porque é que aceitámos a pobreza provocada de tantos? Porque é que nos calámos enquanto víamos tantos velhos a morrer, muitos deles com falta de cuidados, até de água, para evitar possíveis contágios? Porque é que aceitámos com naturalidade que profissionais de saúde ou de lares fossem impedidos de entrar em casa pelas próprias famílias com medo do vírus? Porque é que o que não aparece nas televisões pura e simplesmente não existe? Que raio de mundo criámos nós em silêncio, em pânico, com medo da própria sombra?