1 De nome completo Manuel Poças, o meu avô nasceu a 1 de Março de 1918, praticamente no fim da Primeira Guerra Mundial, numa das zonas mais pobres do país. Cumpriu serviço militar nos primeiros anos da ditadura do Estado Novo, com a Guerra Civil espanhola ao lado e um cheiro a Segunda Guerra Mundial no ar. Casou, teve uma filha, enviuvou. Voltou a casar com aquela que seria a minha avó, teve mais quatro filhos, dois deles gémeos e um dos quais meu pai. Viu a minha avó cegar completamente ainda nova. Perdeu um dos gémeos e enviuvou novamente durante os anos 80, e acabou por morrer perto do fim do século, dois meses antes de perder a filha mais velha. Foi proprietário, arrendatário e boémio rural, numa terra que durante anos não era mais que um desterro, de paisagem bruta e chão agreste. Ao largo da sua vida passaram quase todos os grandes momentos do século XX: guerras, epidemias, fomes, ditaduras, revoluções, e o avançar de uma civilização para um estado de conforto, paz, bem-estar, progresso e liberdades sem precedentes. Não se envolveu politicamente em época nenhuma, reagiu de forma indiferente às grandes mudanças do mundo, encolheu os ombros a todas elas e continuou a sua vida, cavando a sua terra, colhendo os seus frutos, comendo e bebendo o que dali lhe vinha. Foi um homem banal, tão comum como quase todos os homens que viveram e vivem no planeta, e a sua memória morrerá, como acontece com todos os banais, daqui a uma geração. Não teve, por um único instante na vida, a ambição de abandonar a irrelevância social, histórica, política, cultural. Limitou-se a viver, com todos os riscos que isso implicava no seu contexto social e histórico, e julgo que isso já lhe deu bastante trabalho. Não que não desejasse o melhor para os seus filhos e netos, não que não tenha trabalhado para isso, mas porque, julgo eu, tinha a perfeita consciência de que o mundo prosseguiria sem ele, a mais completa noção da fungibilidade dos homens e de que nós não somos assim tão essenciais, nem tão especiais.

Não é que essa realidade se tenha alterado. O mundo não acabará com o nosso desaparecimento individual; ele continuará com os que vierem depois de nós e será o que quiserem que ele seja. Mas tenho a sensação de que vivemos num caldo civilizacional e cultural que, independentemente das classes sociais, dos graus de literacia ou das opções político-ideológicas de cada um, nos pode retratar como um aglomerado ocidental de indivíduos entediados e convictos da sua imprescindibilidade e, pior, da sua imortalidade. A percepção da realidade, essa sim, mudou e muito.

Eu não passei por guerras, nem o serviço militar cumpri, não passei por especiais privações pessoais ou colectivas. Vivi sempre num país em paz, em democracia, com liberdade, com possibilidade de estudar mais e viver melhor que as gerações que me precederam. O meu avô, por sua vez, contava, como outros velhos na aldeia contavam, uma história que retrata parte da diferença que nos separava: eu nunca vi, como eles viram nos anos da Guerra Civil, espanhóis a passar a fronteira, descalços e em farrapos, para arrancarem as batatas que os que deste lado da fronteira acabavam de semear, e as comerem assim mesmo, cruas e carregadas de terra. A geração dele viu o sofrimento em directo; a minha estava e está habituada a vê-lo na televisão, por entre garfadas de bife com batatas fritas e antes da notícia de mais um panda bebé que nasceu num zoo não sei onde.

Lembrei-me disto há dias a caminho do Minho, onde fui passar o Natal, depois de ter posto os olhos em vários cartazes na auto-estrada que pediam «zero mortes» e de ter ouvido vários anúncios no rádio que clamavam pelo já conhecido «planeta zero». O meu avô, que não era médico, tinha apenas a quarta classe e nunca saiu daquele desterro raiano de Monfortinho, não temia o fim do mundo e a única coisa zero que o movia era «zero fome» para si e para os seus.

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Mas ele, enfim, nasceu numa época em que as pessoas não assistiam a apocalipses diários e ao minuto, nem entravam em pânico por razão alguma. Não faziam, por exemplo, funerais por videochamada, não trancavam doentes em casa, e muito menos o faziam a pessoas saudáveis, isolando-as do convívio social ou mesmo do apoio clínico e familiar possível naquela época da pneumónica. Aliás, são conhecidos os relatos das mortes pandémicas de Francisco e Jacinta, os dois pastorinhos de Fátima, que, estando gravemente doentes, à beira da morte, não deixaram de ter as famílias ao seu lado, o auxílio possível numa época em que não havia muito mais que a boa vontade, a fé e a eventual sorte de haver algum médico por perto. Pelo contrário, nestes anos igualmente pandémicos a diferença comportamental da sociedade é gritante. Ficámos, por exemplo, a conhecer relatórios que indicam que houve velhos a morrer em lares por mera falta de cuidados básicos, como água para beber, por se encontrarem infectados. Também não me têm faltado relatos de gente que ficou sem cuidados médicos por razões inexplicáveis: um homem que, tendo sintomas de AVC, foi mandado para casa por ter tido um teste à Covid-19 positivo, com a recomendação de só voltar ao hospital para receber o tratamento adequado quando tivesse um teste negativo; uma mulher que, tendo duas otites, entrou no hospital com febre e acabou enfiada numa sala isolada porque ninguém lhe queria tocar; crianças com dores de dentes que, fazendo febre, foram fechadas em salas. Imagino o que para aí não irá de falta de cuidados médicos, de vacinas essenciais por dar, de cancros não diagnosticados, de diabetes sem vigilância, enfim, uma mortalidade silenciosa que tem varrido o país e para a qual ninguém parece especialmente alarmado.

A sociedade do espectáculo vive, pois, assim: o que passa nas televisões existe, o que vive fora delas não existe. Há uns meses, em conversa, uma senhora dizia-me, do alto dos seus quase 60 anos, que «ontem morreram umas 70 pessoas», tentando enfiar-me algum juízo na cabeça, porque ela tinha aquela idade e nunca tinha visto nada assim. Tentei rebater o argumento, dizendo-lhe que na verdade «ontem morreram cerca de 500 pessoas, e o normal é morrerem perto de 300 todos os dias». Ela assustou-se: «mas de covid?», perguntou. Eu serenei-a: «não, no total»; e ela levou a mão ao peito, refez-se do choque, e clamou de alívio: «Ah, bom!». Fiquei nesse dia muito satisfeito por lhe ter proporcionado aquele bálsamo, mas também ganhei aí a certeza de que a estupidez é mais infinita que o universo.

2 Tudo isto que estamos a viver há quase dois anos seria muito interessante, de facto, não fosse o impacto que um suicídio (porque foi o que decidimos fazer) social, económico, sanitário, político, civilizacional e financeiro tem na vida de quem nos sucederá na árdua tarefa que é estar no mundo. Mas, há que reconhecer, o tal caldo cultural que nos permitiu embarcar neste suicídio colectivo já cá estava há algum tempo. E, mais uma vez, as razões deste imaginário apocalíptico comum, pelo menos nos países ocidentais ou ocidentalizados, não dependem de opções ideológicas, classes sociais, graus de instrução ou mesmo de níveis de inteligência. É apenas a materialização de uma civilização em decadência, sem grandes ou pequenas causas comuns, incapaz de se mobilizar colectivamente por coisa alguma, com excessivo medo do futuro na exacta medida em que teme ao mesmo tempo o próprio desaparecimento, e que resolveu reagir a uma doença altamente espectacularizada de forma menos civilizada e menos solidária que a geração dos meus bisavós aquando da gripe espanhola. Que o digam, noutro aspecto da vida futura do mundo, os milhões de crianças e jovens que se viram privados da aprendizagem, do convívio social, das amizades, dos namoros ou, mais grave ainda nalguns casos, da simples alimentação escolar.

António Araújo refere-se (‘Da Direita à Esquerda – Cultura e Sociedade em Portugal, dos anos 80 à actualidade’, edição Saída de Emergência, 2016), suportando-se numa definição esboçada pelo crítico musical e ensaísta Marc Spitz, ao apogeu da cultura twee como um quadro generalizado de comportamento e predisposição das sociedades contemporâneas: «concentração na bondade essencial dos seres humanos, descartando realidades como a morte, a violência, a crueldade, a pornografia, o crime; primado do belo sobre o feio; ausência de ambição e de ganância por bens materiais; celebração da inocência infanto-juvenil e desconfiança em relação ao mundo adulto; desejo incontrolável de conhecimento e, sobretudo, de descoberta; apreço pelos mais fracos e excluídos, incluindo os nerds ou as virgens; interesse pelo sexo mas dificuldade em concretizá-lo; culto de um “projecto de paixão”, seja ele uma banda musica, a gastronomia ou a culinária, o artesanato ou a produção manual de vestuário. (…) Em todos estes movimentos encontramos, no fundo, a mesma tendência única para iludir uma realidade marcada pela constante revelação de escândalos de corrupção e misérias político-financeiras. A cultura e as artes, mas também o lifestyle e o consumo, configuram-se a esta luz como o paliativo possível para o desencantamento do mundo. À crispação da política, da economia e da sociedade, responde-se com uma mundividência soft e conciliadora (…) A cosmovisão contemporânea valoriza a suavidade e foge do conflito; odeia o ódio, tem horror ao feio e ao miserável.»

Esta tendência foi particularmente visível no início da pandemia com a representação gráfica em milhões de janelas no mundo ocidental de um arco-íris com a frase “vai ficar tudo bem”, uma invenção italiana que serviu, inicialmente, para serenar as crianças depois dos brutais decretos de encerramentos de sociedades inteiras e retratos apocalípticos ao minuto nas televisões, e depressa se tornou no hino de uma civilização e um mantra de gente adulta. São também disto exemplo as permanentes batalhas contra o cancro de figuras públicas que dominam o espaço mediático: quando sobrevivem à doença, elas venceram; quando não sobrevivem, o cancro foi mais forte; caso o morto, sendo figura conhecida do público, não tenha feito da sua luta pela vida um momento de partilha e interacção com a plateia que é a sociedade inteira, então os telejornais anunciam que morreu vítima de doença prolongada, para não ferir susceptibilidades. É, na verdade, a materialização de uma crença que dita que nós podemos e devemos dominar e controlar tudo, associada a uma infantilização dos comportamentos que nos faz colorir as adversidades que no fundo não podemos controlar. O que estamos a fazer há quase dois anos é precisamente isto: fazer de conta que somos capazes de manobrar um fenómeno natural como é um vírus, que se nos portarmos bem ele acabará por ir embora. É a politização e intelectualização da canção da Xana Toc-Toc: «todos unidos, todos protegidos, vamos todos juntos dizer adeus ao vírus.»

Esta paranóia colectiva fim-mundista é, insisto, indiferente ao facto de os seus seguidores serem mais ou menos frequentadores dos concertos de Tony Carreira ou da Ópera de Viena, mais leitores da revista Caras ou do Jornal de Letras. É, creio, o resultado de um cenário transversal de um certo culto individualista que pretende fazer com que cada um de nós se torne absurdamente especial e infungível. Decorrerá do tal apogeu do twee, de que fala António Araújo, sim, mas também da combinação explosiva que se gerou pelo facto de a sociedade ter visto na pandemia um motivo de esforço comum e que levou, e continua a levar, muita gente a acreditar que se cumprir regras e directivas ilegais, inconstitucionais, erráticas e contraditórias, está, na verdade, a salvar o mundo.

Esta predisposição individual, de satisfação pessoal e de tentativa de alcance de um elevado estado de realização, verifica-se, entre muitos outros fenómenos, naqueles que são os grandes sucessos literários do nosso tempo: livros de auto-ajuda e desenvolvimento pessoal e espiritual: Confiança Instantânea – Conquiste o mundo com o poder da confiança, Mude a sua vida em sete dias, Eu consigo fazer-te feliz, Tu consegues ser brilhante; os dez livros de J. Kenner: , Chama-me, Seduzo-te, Captura-me, Liberta-me, Deseja-me, Ama-me, Possui-me, Desejo-te, Incendeio-te, Recebe-me; a enxurrada de bíblias, verdadeiros substitutos da original: A Bíblia do Tarot, A Bíblia dos Cristais, A Bíblia da Meditação, A Bíblia Anti-Idade, A Bíblia do Reiki, Superalimentos – A Bíblia, A Bíblia dos Bolos de Casamento, Smoothies Verdes – A Bíblia; fórmulas fáceis para o sucesso e a criação de soluções simples que levam a crer que tudo se torna controlável graças à vontade: Pense e enriqueça, Mexa o seu dinheiro e enriqueça com a crise, Como atrair dinheiro – Pense, acredite e enriqueça, Desperte o gigante que há em si; as dietas como método de assimilação de um mecanismo de superação pessoal que nos leva a acreditar que sob o domínio da vontade e do querer tudo é possível: A Dieta das Princesas – Perder peso, mudar de vida, ser feliz, Eu experimentei as dietas dos famosos e sobrevivi, Dieta Única, Dieta da Meditação, A Dieta 31 dias, Vencer a batalha da comida, A Dieta Anti-cancro, Comer para vencer o cancro; A Vida secreta dos Intestinos, O Intestino Feliz, O Intestino – O nosso segundo cérebro, A Incrível limpeza do fígado e da vesícula, A Enzima para Rejuvenescer, A Enzima Prodigiosa; ou uma manancial de segredos da humanidade transformados, alguns, em sucessos de vendas à escala mundial, que exaltam a individualidade como caminho para a felicidade: Ama-te, Acredita em Ti, O Poder está dentro de Si, A Vida ama-me, Este Livro Ama-te, A Tua Marca Pessoal – Desenvolve e explora as tuas características únicas para melhorares a tua vida pessoal e profissional, Tu Podes – Novas ideias para dinamizar o seu talento, Tu Podes salvar o Planeta – 101 maneiras de Tu fazeres a diferença, Tu Podes, assim Tu Queiras – 50 formas de viver uma boa vida, Como Ser Feliz, O Mapa da Felicidade, O que lhe falta para ser feliz?, Louco por Viver – Desperte a sua paixão pela vida.

Como escreve ainda António Araújo (de onde retirei praticamente toda esta lista de títulos literários), «esta literatura é produto e causa de um profundo individualismo, com laivos de infantilidade, centrando-se em exclusivo no eu de cada qual e promovendo a sua auto-ajuda, a sua auto-estima, o seu auto-conhecimento (mesmo o voluntariado e o auxílio ao outro participam por vezes dessa lógica, sendo o altruísmo encarado como uma forma de auto-satisfação pessoal, para que cada qual “se sinta bem consigo” ou, melhor ainda, “se sinta bem consigo próprio”.) (…) É surpreendente que, apesar desta avalancha de terapêuticas e soluções práticas em forma de livros, filmes, espiritualidades, os problemas persistam: o relatório Saúde Mental em Números 2015, divulgado pela Direcção-Geral de Saúde em Março de 2016, considera que, se ao número de suicídios registados se somar o das mortes por causa indeterminada, como recomendao os especialistas, Portugal encontra-se nesse domínio “em níveis próximos do alerta vermelho”, como referiu o psiquiatra Álvaro de Carvalho, director do Programa Nacional de Saúde Mental. Por outro lado, o ritmo de prescrição de psicofármacos não decresceu, verificando-se sinais de preocupação nas benzodiazepinas (ansiolíticos, sedativos e hipnóticos), com “níveis de risco para a saúde pública”, segundo aquele psiquiatra. (…) Em 2014, os Portugueses consumiram 91.496.345 doses diárias de alprazolam e 65.851.064 de lorazepam; e entre 2010 e 2014 aumentou substancialmente o consumo de antidepressivos, ultrapassando mesmo o de tranquilizantes. As crianças portuguesas até aos 14 anos consomem mais de 5 milhões de doses por ano de metilfenidato, um psicofármaco usado para tratar a hiperactividade e o défice de atenção, informa a Direcção-Geral de Saúde num relatório relativo a 2015. O consumo de canábis e ecstasy tem aumentado entre os jovens europeus e, segundo os jornais, “em 2014, as drogas ressurgiram mais potentes e terão matado 6800 pessoas”. (…) Diversos estudos concluem que 1 em cada 3 pessoas considera viver em estado de profunda solidão. Paradoxalmente, ou talvez não, isto ocorre no tempo das hiperconexões, dos livros de auto-ajuda e das redes sociais; a solidão, de acordo com cerca de 70 estudos com mais de 3 milhões de participantes, aumenta a mortalidade em cerca de 26%, aproximadamente o mesmo do que a obesidade.»

3 A esmagadora maioria da população ocidental ou ocidentalizada não sobreviveu à sua própria decadência civilizacional. Profissionais de saúde, jornalistas, intelectuais, políticos, governantes, e a população em geral, embarcaram numa narrativa apocalíptica diária que dificilmente terá fim, e quando o tiver rapidamente será substituída por outra (provavelmente pelo fim do mundo em 2030 provocado por pessoas que comem carne). Às tantas, perdi-me nos casos diários, nos assintomáticos a quem se desejam as melhoras, nos internamentos à beira do caos com 0,01% da população em camas hospitalares, nas resoluções de conselhos de Ministros que restringem direitos e liberdades, nas «regras da DGS», nas escolas fechadas, na utopia do teletrabalho generalizado, nos testes para isto mas não para aquilo, nos salvamentos do Natal e não da Páscoa. Já não sei quantas regras incumpro, porque já não quero saber o que vigora. Regra geral, acabo surpreendido e chateado, como daquela vez em que quis comprar um jornal e um maço de tabaco às 13h15 e a senhora me disse, atrás da máscara, da viseira e do acrílico que por causa do vírus há quinze minutos que só podia vender combustível. A única coisa que me apetecia pedir a quem lidera tudo isto e faz o favor de nos anunciar que está a gerir a pandemia, era que abrissem as escolas. É que se há coisa que me norteia desde o dia 13 de Março de 2020 é que o mundo passa lindamente sem mim, que tudo continuará a girar sem a minha insignificante presença nas ruas deste país, mas as minhas filhas não têm culpa nenhuma do que se está a passar e merecem viver dentro da maior normalidade possível. E essa normalidade rege-se por coisas muito simples: poderem estudar, poderem estar com as pessoas de quem gostam, poderem estar com a família, poderem conviver com os avós sem que lhes seja imposto um grau de culpa se alguma coisa correr mal, poderem seguir com as suas vidas com a certeza de que o futuro lhes pertence a elas e não a mim. Imagino que esteja a pedir demais. Mas pior que eu parece estar o senhor Presidente da República: de que serve virar a página se o livro, não sendo bom, é o mesmo?