Eu tenho o hábito, não muito moderno, de julgar que há coisas na vida que não se explicam, não se dominam e não se controlam totalmente, pelo que, regra geral, tenho mais dúvidas que certezas. Talvez por isso sempre tenha suspeitado da incapacidade de um vírus para ler os Diários da República e sempre achei que sociedades inteiras não podiam ser moldáveis por decreto, pelo que, depois da facilidade com que se punha um país inteiro fechado em casa durante duas semanas, seria muito difícil voltar à normalidade. Mas também percebi cedo que não seriam esses detalhes que nos iam prender no que acabou por se tornar evidente: os governos acabaram por se encantar com a situação de emergência permanente e demasiada gente acabou apaixonada pelo chamado “novo normal”, pelo salário inteiro e trabalho a metade, tal como ficou certo desde a primeira hora que se alguma coisa corresse bem naquilo a que se resolveu chamar “gestão da pandemia” o mérito era da burocracia e do Governo, e que se alguma coisa corresse mal a culpa era das pessoas que prevaricavam, o que provavelmente resultaria na demonstração daquilo que o ser humano pode ter de mais perverso. Mas eu sou um pessimista.

Fui, por mera curiosidade e apesar da fadiga que atingi relativamente à discussão e às notícias relacionadas com a pandemia, comparar o mês de Julho de 2021 com o de 2020 e tentar perceber se estamos em situação de milagre ou de fim do mundo. Em Julho de 2020 a máscara na rua não era obrigatória. Não havia vacina disponível, pelo que a percentagem de população vacinada era 0%. Em Julho de 2021, a máscara na rua também não era obrigatória (só o era quando não fosse possível assegurar o distanciamento físico), mas não havia já alma que andasse na rua sem ela. Quando Julho de 2021 começou, 32% dos portugueses tinham a vacinação completa. Sucede que em Julho de 2020 morreram 139 pessoas com Covid-19 e em Julho de 2021 morreram 257. E sucede que a média de 7 dias a 31 de Julho de 2020 era de 402 pessoas nos internamentos e 44 em UCI; e em 2021, a média era de 919 nos internamentos e 199 em UCI.

Não sei se vale a pena continuar a dissecar números, percentagens e estatística. Possivelmente, estou a ver tudo mal, não estou a considerar variantes, o alinhamento dos astros ou o argumento científico recente que se funda em “se não fosse isto podíamos estar muito pior”. O vice-almirante, nova personalidade fétiche da pátria (talvez porque se mostrou competente a fazer o seu trabalho, o que entre nós parece ser sempre uma excentricidade), diz, por exemplo, que o mês de Julho de 2021 está a ser muito bom porque o compara com Janeiro de 2021, em vez de o comparar com o período homólogo. Se calhar sou mesmo eu a ver isto tudo mal, que comparo meses idênticos em vez de comparar meses de Verão com meses de um Inverno rigoroso.

Andamos há ano e meio nisto e já percebemos que o que move as sociedades de boa parte do mundo e o que fomenta as políticas públicas não é a racionalidade, a proporcionalidade, o bom senso, o debate, a divergência de opinião e a busca de consensos, mas antes os sentimentos e as percepções. Talvez por isso se tenha optado por, na mesma semana em que acordámos dispostos a dar abraços ao clima e a salvar o planeta, ceder à pressão das associações de pais (com o beneplácito do Presidente da República e do coordenador do plano de vacinação), vacinando obrigatoriamente crianças, quando tantos milhões de pessoas estão por vacinar nos países menos desenvolvidos.

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Parece, porém, cada vez mais consensual que é preciso “aprender a viver com o vírus”. A dificuldade, aqui chegados, é encontrar uma forma de dar confiança às pessoas para que o possam fazer. Porque nós continuamos a achar que viver com o vírus é andar com duas máscaras, luvas e viseira, e cumprir sem questionar todas as normas e novelos burocráticos de que as autoridades se vão lembrando, em vez de acharmos que viver com o vírus significa aceitar que o risco existe, e que o podemos minimizar (lavando as mãos, evitando grandes aglomerados, utilizando máscaras em espaços fechados com muita gente, etc.) mas não eliminar (ou como diz o vice-almirante Gouveia e Melo, “encurralar o vírus” e “dar a última pancada ao vírus”, como se o vírus fosse um qualquer guerrilheiro a lutar pela independência das praias da Comporta). Não sei, contudo, se estamos preparados para aceitar a vida como ela é, com riscos, depois do que aconteceu nos últimos longos meses.

Nós arriscámos destruir anos úteis a crianças e jovens sem qualquer preocupação pelo seu bem-estar, com a justificação de que era preciso salvar os avós. Facto é que os avós morreram na mesma, abandonados à sorte nos lares, e as crianças perderam muito e passaram a viver permanentemente em ambientes de medo instalado. E assim continuam.

Continuamos também a achar normal encarcerar pessoas saudáveis, algumas vacinadas, sem que estejam sequer infectadas. Continuamos a aceitar medidas restritivas de direitos e liberdades por decreto governamental, sem qualquer controlo pelo Parlamento. Continuamos a tomar recomendações da Direcção-Geral de Saúde como lei. Aceitamos que a Direcção-Geral de Saúde altere composições de equipas depois de ter respostas científicas que contrariam as intenções do Governo, para depois, com a nova equipa, dar uma chancela de rigor científico às pretensões do Executivo. E aceitamos uma espécie de apartheid sanitário, uma divisão entre cidadãos certificados e não certificados, puros e impuros, proposta defendida acerrimamente até pelo Bastonário da Ordem dos Médicos.

Não ponderamos a proporcionalidade e equidade das medidas tomadas, não queremos saber se provocam mais ou menos dano social. Continuamos a achar que uma pandemia é um fenómeno clínico e não um fenómeno social, pelo que achamos normal que sejam os médicos quem mais ordena na sociedade inteira. Ainda achamos que preferir a segurança absoluta nos traz segurança alguma.

Concedemos às polícias uma autoridade e uma força coerciva que não tem fundamento legal ou democrático. Regressámos a um ambiente de bufaria e selvajaria que faz com que doentes curados sejam, ainda hoje, proibidos pelos vizinhos de usar o elevador do prédio; que faz com que funcionárias de lares tenham sido impedidas de entrar nas próprias casas pelos maridos e pelos filhos; que faz com que se tenham apedrejado autocarros com velhos só porque estavam infectados; que faz com que velhos morram abandonados ao calor e à sede, fechados e isolados nos seus quartos dos lares onde vivem; que faz com que tanta gente proíba os seus pais de ver os netos e os obrigue a permanecer em casa desde Março do ano passado.

Haverá mais de 100 milhões de pessoas atiradas para a pobreza extrema (na prática, para a morte) graças às medidas de resposta à pandemia, mas sobre esses a inteligência mediática parece importar-se muito pouco. Isto tudo apenas num ano e meio em que, vivendo uma pandemia que é tida como a única e avassaladora ameaça à humanidade, a população mundial… aumentou.

Foi, em Portugal, um ano de 2020 com um excesso de mortalidade vergonhoso por causas que não se relacionam com a pandemia, mas com as medidas de combate à pandemia, com o medo fomentado que levou tanta gente a temer ir a um hospital, com o SNS focado numa única doença. E um mês de Janeiro de frio rigoroso, casas com falta de aquecimento ou gente com incapacidade para o pagar, com o pânico permanente montado nas televisões, depois de um ano de consultas e cirurgias em atraso, que resultou num mês com um excesso de mortalidade que envergonharia qualquer responsável político num sítio decente. E que, afinal, até foi um mês marcado por uma taxa de ocupação hospitalar que não é incomum entre nós, pelo que os apelos ao pânico, os directos das portas dos hospitais só serviram para que mais gente morresse em casa com medo de ser infectada num hospital. E daqui não se retirou uma única conclusão. A culpa, dizem, foi do Natal – fenómeno que a Páscoa, curiosamente, não causou.

Não discutimos a qualidade e quantidade da habitação, a pobreza, a gestão dos equipamentos públicos (sobretudo escolas e hospitais). Acabámos apenas por aceitar que a única solução para evitar o apocalipse anunciado nas televisões é aprisionar países inteiros e que se alguma coisa não funciona como esperado, a culpa é do vizinho. Para quê abordar os problemas concretos que nos afectam todos os dias se podemos resolver tudo com a culpa alheia?

Tudo isto a bem da saúde pública. Tudo isto desde que se gerou na sociedade a sensação de que cada indivíduo podia estar a salvar vidas desde que cumprisse tudo com rigor, obedecendo cegamente, não questionando ou sequer duvidando do grupo de sábios que nos reina. Tudo isto numa sociedade em que tantos vivem desesperados por encontrar um sentido para a sua vida, em que se passa horas a ver futebol, reality shows, telenovelas e telejornais, em que se consomem antidepressivos como nunca, em que se compram livros de autoajuda como nunca, com tanta gente obcecada com o corpo e a juventude eterna como nunca. Tudo isto com boa parte da comunicação social desesperada por audiências e cliques, que sabe que a desgraça vende, e que se prestou a desempenhar o papel de megafone de tantos governos, quando o seu papel era o de escrutinar, de perguntar, de duvidar e de esclarecer.

Governos, da Hungria a Portugal, passando por tantos outros, aproveitaram a resposta à pandemia para aligeirar procedimentos, para reforçar poderes, para reduzir mecanismos de transparência e para limitar a liberdade dos cidadãos, com o consentimento ou mesmo com o pedido expresso de sociedades em situação de pânico total. Tudo em prol de um bem maior, a salvação da humanidade e evitar “o que podia ser muito pior”.

Serão poucos os que hoje não reconhecem que a democracia e as liberdades estão em risco. Entre nós, por exemplo, anuncia-se André Ventura, verdadeiro martelo pneumático de demagogia e baladeiro de populismo, como grande ameaça às liberdades. Há também quem veja no próprio PS, cada vez mais o partido único da democracia eleitoral, elevado a grande controlador do aparelho de Estado e da sociedade, um perigo para uma democracia plena. Mas quem aceitou todas as ferramentas de que um regime não democrático precisa para vingar não foi nem Ventura, nem Costa, nem Marcelo. Fomos nós. O terreno está pronto para a tirania. Mas, enfim, nada disto surpreende, as coisas são o que são. É a natureza dos homens e a vida como ela é. Há, por isso, que ter paciência.

P.S.: Antes que pergunte: sim, vacinei-me. E não, estar vacinado não faz de mim melhor pessoa. Uma inoculação ainda não define personalidades, não vá alguém ter-se esquecido disso.