O primeiro anúncio não foi tímido, foi menos do que um sussurro: 200 milhões de euros para acudir às aflições das empresas numa altura em que economia está a parar, a produção a desaparecer, o dinheiro a deixar de circular? Ainda essa medida não saíra do papel e já o ministro Siza Vieira, agora acompanhado pelo ministro das Finanças, voltava a falar aos portugueses para lhe apresentar um pacote mais robusto. Agora anunciam-se mais 9.000 milhões de euros em liquidez para as empresas, sobretudo através da garantia de crédito e do pagamento faseado de impostos e contribuições. No total temos 9.200 milhões de euros.
É pouco? É muito? É suficiente? Habituados à escassez dos últimos anos diríamos que parece muito. Receosos do que possa acontecer ao défice e à dívida – gato escaldado de água fria tem medo – não nos atrevemos a pedir mais. Protestam os que ficam de fora e os outros rezam para que corra bem. Nada diferente do habitual.
Lamento, mas desta vez não é possível continuar a pensar e a agir de acordo com os parâmetros dos últimos anos, mesmo de acordo com aquilo que pareciam verdades inquestionáveis há apenas um mês.
Lamento, mas não sendo eu economista, e podendo por isso correr o risco de dizer disparates com mais à-vontade, esta é uma daquelas alturas onde é mesmo necessário pensar diferente e encontrar soluções diferentes.
Vou partir de uma constatação óbvia: o nosso “grande pacote” empalidece quando o comparamos com os que têm vindo a ser apresentados noutros países. 9.200 milhões contra 200 mil milhões em Espanha (ou 100 mil milhões se considerarmos apenas o montante destinado a assegurar a liquidez das empresas), 300 mil milhões em França, 500 mil milhões na Alemanha, 360 mil milhões no Reino Unido, 775 mil milhões nos Estados Unidos.
São números estratosféricos e já estou a ver a crítica dos ortodoxos: Portugal, com 120% de dívida pública, sem moeda própria, não tem a margem de liberdade que alguns destes países têm. É verdade. Mas é uma verdade que tem de deixar de ser verdade.
Não quero repetir argumentos, mas há duas ou três coisas de que temos de estar conscientes.
A primeira é que esta pandemia, ao impor o isolamento social, paralisa mesmo a economia. As pessoas brincam com ter-se voltado a ver o céu azul sobre algumas cidades chinesas, o que é uma boa notícia, mas a má notícia é que o PIB chinês, que crescia ininterruptamente há décadas, pode ter conhecido no primeiro trimestre uma queda homóloga de 6% a 10%, o que é uma brutalidade. Itália irá pelo mesmo caminho. Para Portugal já há estimativas — como as de Abel Mateus — que o PIB em 2020 tenha uma queda que pode chegar aos 5%.
Mas se isto é macroeconomia, o drama maior é o vivido empresa a empresa, onde de um dia para o outro deixou de entrar dinheiro mas que mantêm todos os seus compromissos, em especial os compromissos com os seus trabalhadores.
Nada nos diz que a pandemia, mais a quarentena, sejam coisas para desaparecerem de um dia para o outro. Nalguns sectores de actividade – como o turismo, de que Portugal tanto depende – reganhar a confiança pode levar muitos meses, talvez mais de um ano.
Mas ao mesmo tempo esta não é uma crise estrutural. Passada a pandemia, a atividade económica pode recomeçar e em muitos sectores retomar o seu ritmo sem problemas. Isto se se cumprir uma condição: as empresas conseguirem sobreviver neste interregno, se para sobreviverem não ficarem atoladas em dívidas e se os seus trabalhadores estiverem disponíveis para retomar o trabalho, pois não foi necessário despedi-los.
Usando uma analogia, é como se desligássemos a luz e tudo ficasse às escuras, sendo que o objectivo é que quando voltássemos a acender a luz tudo recomeçasse como se nada tivesse acontecido.
Como é que isto se consegue? Só com medidas radicais, “fora da caixa” como muitas vezes se diz. E sobretudo tendo consciência que num quadro como este não há soluções que não passem pelos poderes públicos.
Pode parecer estranho um liberal defender que há momentos em que só o Estado pode resolver certos problemas, mas não se considerarmos que vivemos uma situação de excepção que muitos comparam a um “estado de guerra”. Trata-se de defesa de uma intervenção de emergência, pontual, destinada a salvar uma economia que se está a desfazer por razões que lhe são exógenas. Desaparecidas essas condições, o Estado deve também retirar-se para as suas funções habituais.
Ora esta ideia – a ideia de uma intervenção pontual, mas radical – tem de ser muito mais ambiciosa do que o plano do nosso governo e, também, do que os planos da generalidade dos governos europeus.
A Europa precisa de um “whatever it takes moment”, isto é, precisa de estar disposta a fazer qualquer coisa de excepcional como Mario Draghi fez para salvar o euro. Uma da hipóteses – e agora espero que não me insultem – é suspender temporariamente o princípio de que o Banco Central Europeu não pode emprestar dinheiro aos governos nacionais. A permissão deve ser dada para que ele o só para esta ocasião e também para que o faça em condições em que tal empréstimo na prática seja uma emissão de dinheiro sem custos (imaginemos empréstimos a juro zero com uma maturidade de 100 anos). Se isto acontecesse dava-se folga a governos endividados como o nosso para gastarem o que for preciso para que as empresas não morram no período em que a economia está, por assim dizer “às escuras”.
Entre os muitos artigos que li nos últimos dias um tinha um título especialmente interessante e provocador. Saiu no Washington Post: A libertarian’s unlikely pandemic plea: Subsidize everything. Não conhecia a autora, Megan McArdle, que presumo seja uma libertária hostil a qualquer intervenção do Estado na economia e na vida das pessoas, as propostas que defende são muito específicas para a realidade dos Estados Unidos, mas há uma ou duas ideias que retive e que, podendo parecer chocantes, são as certas nesta altura.
Uma é que não devemos ter medo de tomar medidas que sejam demasiado caras, que possam distorcer a concorrência ou que possam beneficiar pessoas pouco escrupulosas, não porque esses riscos não existam, mas porque é maior o risco de não fazer nada ou fazer de menos.
Talvez percebamos melhor o que quero dizer dando exemplos concretos. O dinheiro das medidas anunciadas pelo governo vem arrumado em “gavetas”: tanto para o turismo, e no turismo, tanto para as pequenas empresas, depois passa-se à restauração e a listagem segue por aí adiante. É um tique salazarista, imaginado pelo ditador para nunca gastar o dinheiro todo. É o produto de um reflexo burocrático-controlador que receia antes de tudo o mais que o Estado seja enganado.
O dinheiro das medidas do governo também obriga as empresas a apresentar os seus resultados com critérios bastante estapafúrdios para quem conhece a realidade do que nelas se passa, e sempre com a mesma preocupação de evitar fraudes.
O erro está nesta prioridade: primeiro, porque nunca se evitam as fraudes; depois, porque o custo da burocracia é provavelmente idêntico ao custo da fraude; por fim porque numa crise como esta o tempo é crucial.
O que é mais importante? Que as empresas mantenham os seus trabalhadores. Qual a dificuldade das empresas? A tesouraria? Como ajudar? A minha sugestão é que o Estado abdique de receber (e não apenas adie o recebimento) da taxa social única, parte da empresa e parte do trabalhador, na íntegra, e que abdique também de receber as retenções na fonte do IRS dos trabalhadores. Para a generalidade das empresas isto reduziria 40% a 50% os custos salariais.
É um tiro, é uma excepção, é uma vez na vida, é um “whatever it takes moment” e é algo que não obriga ninguém a ir ao banco, à repartição pública ou a preencher formulários.
Como vêem é louco, é radical, é “fora da caixa”, mas estou sinceramente convencido que com mezinhas como as que foram apresentadas pelos nossos dois ministros de Estado vamos caminhar alegremente para o desastre. Quando quisermos tomar medidas a sério serão mais caras e mais dolorosas.
Mas claro que não podemos agir só por nós. Só não acho é que isso seja alibi para a evidente do que nos está a ser apresentado.
Se isto é uma guerra, venha uma economia de guerra.
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