Engraçado. Muitos portugueses não gostam da América, embora gostem de visitar Nova Iorque na medida em que, juram eles, aquilo é essencialmente europeu e não tem nada a ver com o resto (diga-se que, em diversos sentidos, Nova Iorque é a cidade menos “europeia” e mais americana da América, mas pronto). Muitos portugueses troçam da “juvenilidade” da América, que nasceu ontem e carece de “dimensão histórica” (diga-se que os sujeitos em questão desconhecem a história da América, da Europa e da Beira Baixa, mas não sejamos picuinhas). Muitos portugueses abominam a América, que é imperialista, capitalista e fascista (e, imagine-se, o destino sonhado por todos os habitantes das verdadeiras democracias, género Cuba, mas que se lixe). Muitos portugueses riem-se dos americanos, porque são evidentemente incultos e caipiras (diga-se que os caipiras são responsáveis por boa parte dos avanços tecnológicos dos últimos 150 anos e, em média, ganham por semana o que nós ganhamos por mês, mas basta de futilidades). Não obstante, muitos portugueses, invariavelmente os mesmos, demonstram inusitado interesse pelas eleições presidenciais dos EUA.
É uma atitude difícil de compreender. Eu não sinto qualquer curiosidade ou admiração pelo Bangladesh, logo não faço ideia da linhagem de sobas locais. Em contrapartida, os portugueses que desprezam a América mostram-se preocupadíssimos em analisar ao pormenor cada novo inquilino da Casa Branca. Deve ser pelo enorme impacto da América no futuro do planeta, conquanto as pessoas informadas percebam que a América já não tem impacto nenhum, pelo menos desde que a URSS, antes, e a China, agora, reduziram a cinzas o protagonismo americano. Por regra, a inquietação dos portugueses com uma eleição em que não votam é justificada: sempre que o presidente é republicano, vem aí a IIIª Guerra Mundial. Sempre que o presidente é democrata, a apreensão modera-se um pouco. Se o presidente é democrata e meio negro (o facto de ser meio branco não conta), chega a haver relativo entusiasmo. Se o presidente é republicano e completamente Trump, é óbvio que o mundo acabou.
O mundo, li no “Público” e ouvi na Sic, acabou há quatro anos, mal Trump tomou posse e decretou o extermínio da humanidade. Fora isso, tudo permaneceu normal durante três anos e meio. A economia deles manteve-se em franco crescimento. O proteccionismo não foi demasiado além das ameaças. As prometidas carnificinas globais consistiram em refrear os delírios bélicos do sr. Obama e em estabelecer ou influenciar acordos de paz na Coreia do Norte e no Médio Oriente. Os lamentos pelo clima ficaram entregues a uma criança sueca, ao eng. Guterres e outros especialistas de idade similar. Os protestos nas ruas couberam tipicamente aos herdeiros da baderna hitleriana (“antifa”, “black lives matter”, etc.). As divergências raciais sérias seguiram iguais ao que eram. A “radicalização” política e social nem é inédita nem responsabilidade solitária de Trump. A demência inquisitorial nas universidades precede Trump. O muro “de” Trump, iniciado por Clinton, quase não avançou. Em suma, graças a Trump ou apesar dele, sob Trump a América viveu uma monotonia notável, tão notável e tão monótona que o debate público se deu ao luxo de versar temas vitais como o “género”. E depois, no início de 2020, veio a China mostrar que uma superpotência se distingue por produzir vírus em mercados medievais e infectos.
Se Trump perder as eleições, o que é provável que aconteça, perde-as por causa da Covid. É possível que também as perca por causa das suas declarações acerca da Covid. Nesse e noutros assuntos, Trump, um pantomineiro, perde frequentemente pela língua, que ora tem piada na ofensa de adversários, ora não tem. No caso, acaba por ser injusto. Sobre a Covid, descontadas as sucessivas atoardas, Trump esteve essencialmente bem: ao invés dos charlatães que apelam ao medo, Trump fez o que fazem os líderes e lutou para que o medo não vencesse. À sua destrambelhada maneira, respeitou as pessoas, por oposição ao enxovalho hoje vigente nalguma Europa. Se calhar, não resultou. Se calhar, até na América a maioria das pessoas já prefere ser enxovalhada.
Não tenho muita pena da eventual derrota do homem. Tenho um bocadinho. O primeiro motivo é racional: se, em geral, os sujeitos que detestam a América estão contra Trump, é lícito suspeitar que Trump é bom para a América, país de que gosto. O segundo motivo é irracional: não apreciando o estilo fanfarrão e malcriado de Trump, aprecio a repulsa que o estilo fanfarrão e malcriado de Trump provoca em criaturas imensamente mais repulsivas do que Trump – e não falo apenas do lendário Costa Ribas. Sobretudo aprecio o que Trump, com equívocos pelo meio, representa para os que o elegeram: um desafio à arrogância das costas Leste e Oeste, que olham para o “interior profundo” com uma mistura de divertimento e nojo. É estranho que um promotor imobiliário, e bilionário, de Nova Iorque simbolize a revolta dos “esquecidos” contra as classes dominantes, repletas de prepotência, culpa, hipocrisia, susceptibilidade e mimo. Mas alguém teria de o fazer.
Se Trump continuar a fazê-lo por novo mandato, óptimo. Se não, o mundo não acaba (acabou há quatro anos, lembram-se?). Com sorte, o sr. Biden, um taralhouco simpático rodeado por alguns doidos antipáticos, não destruirá a União. Ao contrário de muitos portugueses, gosto da América (não sei se já o disse), conheço-a razoavelmente para um turista e aprendi uma coisa: é impressionante a indiferença da vida americana ao indivíduo que serve de chefe de Estado. Andei repetidamente por lá nas presidências de W. Bush, Obama e Trump e, salvo pelo residual “merchandising” (exaltador de Obama, insultuoso dos outros dois) em lojas “fofinhas” de Nova Iorque ou Boston, de Los Angeles ou São Francisco, a “presença” do presidente no quotidiano é nula. Não existe a percepção de quem manda.
Principalmente porque na América quem manda, manda pouco. A ideia de uma figura tutelar e omnisciente é própria de sociedades pré-civilizadas, em que qualquer burgesso chega ao poder e desata a tratar os cidadãos abaixo de bonequitos, dependentes, reverentes, medrosos e infantis. Se eu fosse certos portugueses, deixava Washington em paz e dedicava-me a escrutinar um lugar assim.