Consta da lista de recomendações da comissão independente que estudou o fenómeno dos abusos sexuais de crianças e adolescentes no âmbito da Igreja Católica nos últimos setenta anos a derrogação da regra do sigilo de confissão em caso de conhecimento da prática desses abusos. Alguns dos membros dessa comissão advogaram essa derrogação, em circunstâncias excecionais, quando foram recentemente ouvidos no Parlamento. Alguns deputados seguem essa linha e propõem a revisão da Concordata, a qual garante esse sigilo no seu artigo 5º.
Salvo o devido respeito, essas propostas revelam desconhecimento profundo do sentido teológico e canónico do sigilo da confissão. Não será certamente de esperar que uma regra que a Igreja nunca derrogou durante séculos, mesmo perante pressões e ameaças de todo o tipo de poderes, nos mais variados contextos sociais e em todos os pontos do globo, viesse agora a ser derrogada no nosso país. Afirmou a propósito D. José Ornelas que pela salvaguarda dessa regra muitos morreram (e foram, por isso, considerados mártires) e muitos estarão dispostos a morrer. Invariavelmente, os bispos de países onde tal proposta tem sido recentemente apresentada, e nalguns casos já traduzida em lei (na Austrália e no Chile, designadamente), têm-na recusado liminarmente (assim, também os bispos franceses diante da recomendação do relatório Sauvé). E assim também o Papa Francisco, a doutrina católica e as normas de direito canónico consagram a inviolabilidade absoluta desse sigilo sacramental. Trata-se de uma norma canónica que não pode ser alterada no futuro (como poderão ser as normas canónicas de «direito eclesiástico»), por se tratar de uma norma de «direito divino revelado» (ou seja, que é inerente à própria natureza do sacramento, como foi instituído por Jesus Cristo), como também reafirmou uma nota da Penitenciaria Apostólica (da Santa Sé) de 2019. Mesmo que uma lei civil imponha a violação desse segredo, o sacerdote que desobedeça a essa lei incorre na pena de excomunhão (cânone 1388), a mais grave das penas previstas no Código de Direito Canónico. Os sacerdotes conscientes da sua missão hão de preferir uma condenação numa qualquer pena civil (até a de prisão) à condenação nessa tão grave pena canónica de excomunhão.
O artigo 5.o da Concordata estatui que «os clérigos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério». Admito que esta formulação tão ampla e genérica possa abranger situações que estão para além do carácter absoluto do sigilo de confissão ou algo que lhe possa ser equiparado (por envolver o âmbito de intimidade da consciência, como sucede na direção espiritual). Parece-me, por isso, que este artigo da Concordata pode ser interpretado restritamente: esta garantia de sigilo diz respeito ao que é específico do ministério sacerdotal (o que se verifica no sacramento da confissão), não noutras tarefas que um sacerdote pode desempenhar como as pode desempenhar um leigo (professor ou diretor de uma instituição de solidariedade social, por exemplo). Nessas outras tarefas, o sigilo poderá ser garantido nos mesmos termos e com as eventuais limitações do sigilo garantido à profissão em causa (não nos termos absolutos do sigilo de confissão).
Mas o fundamento da proteção do sigilo de confissão não assenta apenas no direito canónico (o direito da Igreja que não vincula o Estado) ou no direito concordatário (o direito que entre nós rege as relações entre o Estado e a Igreja Católica através de um acordo de direito internacional). Esse fundamento liga-se ao direto fundamental de liberdade de consciência, que decorre do direito natural e tem consagração positiva no artigo 41º, nº 1, da nossa Constituição.
Quando em França surgiu a recomendação do relatório Sauvé de limitação da proteção do sigilo de confissão, logo o Governo francês se apressou a manifestar a sua intenção de assim proceder por via legislativa, afirmando um seu representante que tal segredo não pode estar «acima das leis da República».
Não é verdade que «as leis da Republica» se sobreponham a tudo, elas estão vinculadas ao direito natural, em que assentam direitos humanos fundamentais como os da liberdade de consciência e de religião.
Estão em causa normas de processo penal. Ora, o processo penal como instrumento de combate à criminalidade também reconhece limites, porque «os fins não justificam os meios». Por muito eficaz que pudesse ser, por exemplo, a tortura como instrumento de combate à criminalidade, nunca ela seria admissível.
Violar o segredo de confissão é invadir o domínio mais íntimo da pessoa, o da sua consciência e da sua relação com Deus. Na definição da constituição do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (nº 16), «a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus». Na confissão, o sacerdote intervém, tão só, como ministro de Deus.
É este respeito pela intimidade da pessoa e da sua consciência que justifica que no Código de Processo Penal português (artigo 135º, nº 5) o sigilo religioso (onde se inclui o sigilo de confissão a que estão sujeitos os sacerdotes católicos, mas também todos os segredos de ministros de outras comunidades religiosas que àquele se possa equiparar, por envolveram o domínio íntimo da consciência) nunca possa ser quebrado, ao contrário do que sucede, a título excecional e quando estejam em causa «interesses preponderantes», com outros segredos profissionais.
Admitir que, em nome da eficácia do combate à criminalidade, se invada esse domínio da maior intimidade como é o da consciência seria talvez mais grave do que admitir gravações não consentidas de imagem e voz em quaisquer locais e contextos, por mais reservados e íntimos que sejam (não apenas os públicos). Seria aceitar que «os fins justificam os meios».
Depois, há que salientar também que a possibilidade de violação do segredo da confissão seria contraproducente na perspetiva da proteção das vítimas. Sem a garantia do respeito absoluto por tal segredo, certamente os autores destes e de outros crimes não recorreriam à confissão. E através da confissão eles poderão, e deverão, ser incentivados, até como condição da absolvição, a alguma forma de reparação de danos causados e a dar passos efetivos no sentido da não repetição do pecado cometido.
Também para a vítima, o respeito do segredo de confissão pode levá-la a pela primeira vez falar com alguém sobre o assunto (como sucedeu com a garantia de anonimato dos depoimentos prestados perante a comissão independente que elaborou o estudo pedido pela Igreja portuguesa) e, como salientou o presidente dos bispos franceses, tal representar «o primeiro passo no sentido da libertação da palavra». A partir desse passo, pode ser incentivada (mas não forçada, ou pressionada) pelo sacerdote a prosseguir nesse sentido, denunciando a prática do crime.
Outros são, pois, os caminhos do combate à prática de crimes de abusos sexuais de crianças e adolescentes que não passam pela derrogação da regra do segredo de confissão.