A pergunta foi feita a Assunção Cristas num encontro com empresários na Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa e resume tudo: “Em que CDS é que os portugueses podem confiar? O CDS da troika (…) ou o eleitoralista?” É possível que a líder centrista considere injusto estar a ser julgada pelo que pensa ter sido um único passo em falso – o famoso voto ao lado da esquerda na crise dos professores –, mas a verdade é que nem nesse encontro, nem nessa noite, numa entrevista à TVI, foi capaz de desfazer a dúvida. Isto é, de assumir que o CDS de hoje ainda é o CDS da troika. Não creio que assim se consiga reconciliar com uma parte significativa do eleitorado que, em 2015, votou na coligação PSD/CDS.
Creio que se Rui Rio se sentasse na poltrona onde Cristas esteve para conversar com os empresários ninguém sequer lhe faria a mesma pergunta. O líder do PSD não tem feito outra coisa desde que assumiu a liderança do partido do que tratar de espalhar aos quatro ventos que o “seu PSD” é que é “social-democrata”, distanciando-o da suposta “deriva liberal” dos anos da troika. Isto ao mesmo tempo que, com aquele seu jeito muito particular, vai deixando cair que se calhar ainda teria tomado medidas orçamentais mais duras. Como entretanto também ficou na malfadada fotografia dos professores, bem podem as contas do seu cenário macroeconómico estar todas certas que o eleitor torce o nariz. Cheira-lhe, claro está, a eleitoralismo, e desconfia.
Quando os dois partidos que tradicionalmente representam o centro-direita em Portugal olham para as sondagens só podem sentir um arrepio na espinha – o que elas mostram é igual ou pior do que já ficara evidente nas eleições europeias. O mínimo que se pode dizer é que esses partidos perderam tracção, desligaram-se da sua base eleitoral e não dão sinais de que possam, no curto prazo, reverter essa situação.
Estão a pagar erros antigos e cataclismos recentes, estão sobretudo a expiar o maior dos pecados: o de traírem a sua natureza e o seu eleitorado.
Sem medo, comecemos pelo erro mais antigo e mais persistente: a vergonha de serem diferentes, o medo de combaterem por ideias próprias. Porque é que o PSD insiste em afirmar-se “social-democrata” quando não pertence a essa família política, não tem essa cultura política, sobretudo os seus eleitores não querem que seja mais uma variante do socialismo, querem um partido não-socialista? E será que o CDS ainda quer ser o partido “rigorosamente ao centro”, como se em Portugal, 45 anos depois do 25 de Abril, ser de direita ainda fosse uma vergonha?
Dir-se-á: são restos do passado que contam tanto como o preâmbulo da Constituição em que se escreve que estamos a “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Isto é, são história, são referências.
Todos sabemos que não é assim – tal como sabemos que o conteúdo programático da nossa Constituição não se esgota no supostamente inócuo preâmbulo. E tanto que não é assim que nunca tanto o PSD como o CDS foram realmente coerentes, na sua doutrina, nos seus programas eleitorais ou na sua prática governativa, com um registo abertamente não-socialista. E reparem que nem peço mais – só peço que, sendo não socialistas, sejam alternativas reais, e não apenas funcionais, ou tecnocráticas, ou ocasionais, ao domínio socialista da nossa vida pública.
Depois, leiam Gramsci. Percebam de uma vez por todas que sem uma batalha cultural contra os dogmas dominantes no debate político nunca irão a lado nenhum. Às vezes as batalhas só se vencem da pior forma, quando a catástrofe prova que se tinha razão. Foi a catástrofe que fez as “contas certas” triunfarem sobre a ideia do “há vida para além do défice”, pelo que é trágico ver como os líderes do centro-direita desbarataram esse património por irresponsabilidade e aselhice. Pior: a cultura dominante em ambos os partidos não lhes permitiu ver – não lhes permite ver – que as “contas certas” não foram apenas uma imposição da troika, não são apenas um bom trunfo eleitoral, são mesmo parte do ADN de quem não acredita que cabe ao Estado ser o motor da economia e da sociedade.
Mas há mais e mais importante. Se se quiser ocupar o espaço público combatendo a hegemonia da cultura estatista – e vou dar alguns exemplos de debates desta legislatura –, teria sido necessário ter outra energia na defesa do ensino privado e da liberdade de escolha aquando da polémica dos contratos de associação, era obrigatório ter defendido que o lucro não é incompatível com bons cuidados de saúde, pelo contrário, não se devia ter tido medo de dizer que tudo estaria melhor na rede de transportes públicos se estes tivessem sido concessionados a privados, pois estes teriam feito os investimentos que o Estado não fez, não se devia ter tido medo de defender aquilo que a esquerda atacou como sendo a “lei dos despejos”, mostrando como ela transformou para melhor as nossas cidades, e por aí adiante.
Mas não. Em vez de repetir e repetir que havia outro caminho, ficou-se à espera que as coisas corressem mal e apostou-se apenas na denúncia dos falhanços e das mentiras da geringonça. É pouco e sobretudo não constrói uma cultura alternativa. Porque a alternativa não é gerir melhor – é gerir diferente, com políticas diferentes, com outra visão do que deve ser o papel do Estado e, sobretudo, do que deve ser o papel da sociedade civil.
Querem saber como foi possível o erro dos professores? É fácil: no PSD e no CDS (como no PS, de resto, mas aí havia Mário Centeno), a cultura dominante é a do funcionário público. Ninguém que conheça a realidade – e as dificuldades – do sector privado acha razoável que se possa recuperar todo o tempo de serviço, como se não tivesse havido crise e um brutal ajustamento do mercado de trabalho. No PSD e no CDS pensa-se dentro do Estado, no quadro do Estado, e por isso o único problema era saber se havia ou não dinheiro para pagar as reivindicações de Mário Nogueira. Nunca foram capazes de dizer que essas reivindicações não eram justas.
Acham que exagero? Desenganem-se. E vão ver como Assunção Cristas se engasgou na questão das 35 horas na administração pública na sua entrevista à TVI. É assim tão difícil assumir que a lei devia ser igual para todos, trabalhadores do sector público ou trabalhadores do sector privado? É assim tão difícil sacrificar alguns votos amanhã – até porque perdido por cem, perdido por mil – em nome da coerência de uma visão sobre o que deve ser o país?
E se este défice de combate cultural é velho de muitas décadas – tem porventura a idade da nossa democracia, com poucos períodos de intervalo –, houve ainda quem não apenas desiludisse, como assumidamente traísse os eleitores que, apesar de tudo, em 2015 se tinham mantido fieis ao PSD e ao CDS contra tudo e contra todos, e para surpresa de muitos.
Esses dois partidos tinham – e ainda têm, pelo menos algumas das suas figuras não o perderam – um património político importante: tinham feito o que era preciso fazer nos dias difíceis. Tinham ganho a batalha das ideias no que respeita às “contas certas”. Mas também tinham um problema por resolver: o programa que tinham aplicado nos anos da troika não era o seu programa. Não faz parte do seu ideário aumentar impostos – ou pelo menos não devia fazer parte. Por isso tinham de se reinventar num quadro em que outros estavam a apresentar-se como novos campeões das “contas certas”.
Ora se o CDS ainda fez algum esforço – mas desajeitado: ter boas propostas não é ter um programa político alternativo, ter boas ideias não chega para combater a hegemonia cultural do estatismo –, o PSD de Rui Rio fez gala em literalmente deitar a casa abaixo. Renegou o legado dos anos difíceis, como se tivessem lepra, e tentou vender aos portugueses uma outra versão de socialismo, porventura mais moderada, mas em quase nada substancialmente distinta da versão genuína. Só por clubismo e inércia do seu eleitorado tradicional não desceu ainda abaixo dos 20% nas intenções de voto, mas Rio está a esforçar-se para lá chegar.
Tem-se por isso a sensação de, neste país adormecido e que vai perdendo lugares na Europa, estarmos sem tecto, entre ruínas. O que talvez permita olhar para fora das paredes que nos limitaram e ainda limitam. E o que me fez lembrar uma resposta que, há quase dez anos, num diálogo que mantive com D. Manuel Clemente, ele então me deu:
“Estamos de certo modo em tempo de escombros. Mas já se detectam indícios de reconstrução. Gente que “acorda”, que se compromete e procura. A quem parece ter perdido o presente cabe agora anunciar o futuro.”
Ele falava do Cristianismo, será que podemos dizer o mesmo sobre Portugal?
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