Instabilidade política e social com a economia a abrandar e sem ainda sabermos se teremos uma recessão. É assim que entramos em 2024. Por cá, as eleições podem não garantir estabilidade, mas quem quer que venha a ser Governo tem na habitação, saúde, educação, imigração e ambiente enormes desafios. Desafios que carregamos na mochila e que não são fáceis de vencer se não existir coragem política de fazer e mudar algumas práticas.
1 A situação política no país e no mundo é a pedra base que carregamos para o próximo ano. Libertarmo-nos dela seria a chave do regresso a um mundo mais estável e aberto. Entramos em 2024 com um mundo mais perigoso. A Europa rodeada por dois conflitos, com ameaças externas, por via da guerra na Ucrânia, e internas, como consequência da guerra de Israel contra o Hamas e como os alertas de terrorismo neste Natal bem revelaram.
Os nacionalismos crescem, as sociedades radicalizam-se, com um peso crescente de posições anti-imigração e anti-liberdades individuais, e as economias fecham-se, com tendências de desglobalização. A degradação de valores morais e éticos – como dramaticamente se viu em Espanha, onde o PSOE de Pedro Sanchez mostrou que vale tudo para manter o poder, ou como menos dramaticamente vimos em Portugal durante o último ano (mais de um ano) –, vão alimentando o monstro da descrença na classe política e a busca por alternativas populistas e conservadoras.
É neste enquadramento que iremos eleger eurodeputados em Junho e por cá vamos para legislativas em Março, sem qualquer garantia de conseguirmos uma solução governativa estável. Em 2023 aprendemos que uma maioria absoluta não é nem condição necessária nem suficiente para a estabilidade governativa. A dita Geringonça (2015-2019), sem que o PS tivesse maioria absoluta, foi mais estável politicamente, embora a governação tenha estado condicionada, nas suas políticas públicas, pela garantia dessa maioria e com custos que estamos a pagar agora.
As ditas contas certas foram obtidas com sacrifício das melhores políticas públicas de modernização, investimento e preparação do país para os desafios que tinha pela frente e que agora estão expostos de forma especialmente dramática na saúde. A função objetivo desse governo foi garantir o poder sujeito à redução do défice. Veio depois a instabilidade, e a maioria absoluta mostra que, afinal, não existia nenhuma ideia para o país.
A disciplina orçamental, que já neste momento revela sinais de insustentabilidade por via da degradação dos serviços públicos, vai ter o seu teste final na futura evolução da economia, uma outra pedra de peso que transportamos para 2014.
2 Abrandamento da economia ou recessão? As previsões mais recentes, que são as do Banco de Portugal, apontam para um crescimento da economia portuguesa de 1,2%. Mas verdadeiramente não sabemos. Tudo depende do que acontecer na Europa. Dois terços de 48 economistas questionados pelo Financial Times preveem um abrandamento da atividade económica e admitem que a economia europeia está já em recessão.
O cenário mais provável, neste momento, é de uma aterragem suave, ainda que tudo esteja dependente da evolução da inflação. Se os preços continuarem a aumentar acima do objetivo do BCE, é provável que se assista a uma nova subida, ainda que neste momento tudo aponte para uma paragem na subida dos juros. As Euribor a seis e doze meses já começam a antecipar essa interrupção e até uma descida algures na segunda metade do ano.
Claro que a evolução dos conflitos que rodeiam a Europa são aqui muito importantes. Uma nova subida dos preços da energia ou um aumento significativo da insegurança podem ser factores mais importantes do que a evolução dos juros ou dos salários, na determinação do ano económico.
Por cá a dependência do turismo faz com que a segurança seja um elemento importante a par, obviamente, da evolução do poder de compra dos europeus. Seja qual for o cenário, vamos ter um ano de teste à disciplina orçamental. Com menos crescimento e menos inflação há menos receitas fiscais. Embora parte das receitas tenham vindo para ficar – é a inflação que desce e não os preços e, por isso, o IVA incide sobre valores mais elevados –, deixam de existir receitas caídas do céu. E do lado da despesa há muitos problemas para resolver nos serviços públicos que exigem mais e não menos gastos. Para não falar das promessas eleitorais que, se não forem prudentes, podem representar um salto nos gastos, e nos vícios de apoios discricionários que se ganharam desde a pandemia.
3 Habitação ou os jovens esquecidos. É um dos mais graves problemas a afectar as novas gerações da classe média e que no curto prazo só pode ser resolvido com medidas musculadas, umas que não agradam à direita e outras que não agradam à esquerda, enquanto se tenta acelerar a construção de casas quer de iniciativa pública como privada.
No curto prazo é preciso reduzir a procura de casas de luxo, quer para reduzir o preço, quer para diminuir os incentivos que as construtoras têm de fazer para esse mercado mais rentável. Simultaneamente é preciso manter ou até reforçar o que se tem feito em matéria de alojamento local e entrar também na regulação da construção de hotéis, iniciativas que até contribuem para não condenar o turismo. Mas como se viu pelo Orçamento do Estado, no caso dos residentes não habituais, estas são medidas que merecem as críticas da direita. Paralelamente é preciso adoptar medidas no domínio do arrendamento, que criem maior confiança aos senhorios, para que a oferta de casas aumente e, aqui, as críticas chegam da esquerda. Já foi bom o Governo acabar com a excepção à regra do aumento das rendas.
Há um outro problema que tem merecido o alerta dos especialistas: o modelo de financiamento da construção privada de habitação colapsou com a crise financeira. A regra geral era o construtor pedir crédito ao banco, contruir as casas, vendê-las com os clientes a receberem financiamento e com isso pagar o que devia à banca. Esse modelo criou problemas aos bancos assim que o sector imobiliário colapsou, e com a actual regulação, que limita ativamente a exposição creditícia por sectores, este modelo acabou, retirando do mercado os pequenos construtores sem capacidade financeira. O mercado fica para os grandes construtores e fundos de investimento. É necessário pensar numa forma de fazer entrar mais construtores, de média e pequena dimensão, neste mercado.
O Governo distraiu-se com este problema e tem sido incapaz de lhe dar uma resposta rápida. O Mais Habitação, se excetuarmos a parte dos apoios para mitigar os efeitos da subida dos juros e das rendas, assustou esses investidores nas mãos dos quais hoje estamos. Um novo Governo terá de encontrar soluções que aumentem mais rapidamente a oferta de casas a preços que a classe média possa pagar. Claro que, tudo indica, pode ter alguma ajuda do arrefecimento do mercado. Mas não será suficiente.
4 A imigração, entre dois choques. O problema da imigração dos que procuram trabalho assume duas dimensões: um está relacionado com a exploração e más condições em que vivem alguns desses imigrantes; outro tem a ver com as tensões que se começam a identificar entre as comunidades locais e os imigrantes. Nenhuma dessas dimensões pode ser esquecida nem desvalorizada e a segunda, a do choque de culturas, tende a merecer menos atenção do que a primeira, caindo-se na tentação de usar adjetivos em vez de perceber as razões e tentar resolver o problema.
As famílias portuguesas que vivem com vizinhos que vieram de outros países para trabalharem em Portugal são obviamente as que mais se queixam. Assim como as pequenas localidades onde, em alguns casos, os imigrantes estão concentrados nos centros urbanos.
Se não queremos ser como os países que hoje vemos terem problemas quase insolúveis, como é o caso extremo da França, temos de enfrentar o que se está a passar. Aqui as autarquias podem ter, em colaboração com o Governo, um papel fundamental de integração dos imigrantes em termos gerais, mas especialmente criando programas que os aproximem das comunidades onde estão a viver, para que conheçam as suas culturas. O desconhecido é frequentemente a chave de muitos medos e até ódios. Promover a empatia, trocar experiências pode ser uma das soluções para este problema.
O primeiro passo para contrariar a tendência anti-imigrantes, que se está assustadoramente a instalar em Portugal, é reconhecer que esse problema existe, em vez de tratar mal as pessoas que se colocam nessa posição, deixando ao Chega caminho aberto para as ouvir. A seguir é urgente que se criem programas de integração com as comunidades locais. Ou estaremos obviamente a alimentar o populismo.
5 A educação para as estatísticas. A “geração mais qualificada de sempre” pode afinal e apenas ser mais um exemplo de como alterar as regras para obter boas estatísticas na OCDE. É essa pelo menos a convicção de alguns professores perante as dificuldades criadas em chumbar alunos – prática que começa a chegar às universidades. Mascarado de “inclusão”, o decreto-lei 54 de 2018, que alguns professores citam frequentemente, pode constituir a chave para o que se está a passar.
As notícias mais recentes, reveladas pelo Diário de Notícias, dizem-nos que os resultados das provas de aferição foram desastrosos. No início do mês tivemos os resultados do PISA, os piores desde 2006 como podemos ler no artigo de Alexandre Homem de Cristo. Estamos com estatísticas fantásticas no número de anos de escolaridade e com um desastre no conhecimento que essa escola devia ter dado. Andamos a nivelar por baixo, a afastar da escola pública quem tem dinheiro e a agravar as desigualdades.
Corrigir aquilo que este Governo fez na Educação vai levar anos e uma primeira fase de estatísticas negativas nas qualificações. Mas era urgente que se regressasse a um ensino exigente, se não quisermos condenar-nos ao subdesenvolvimento, especialmente numa altura em que se aproxima, a enorme velocidade, uma nova revolução tecnológica com a Inteligência Artificial.
Seja qual for o novo Governo terá de enfrentar esta situação com coragem. E se for o PS, Pedro Nuno Santos tem de romper com as desculpas habituais que passam por Pedro Passos Coelho, pela pandemia ou até por dizer que os outros também estão a piorar. É preciso acabar com a cultura da falta de exigência. Não é assim que construímos uma sociedade inclusiva.
6 A saúde sem oferta e cara. O Serviço Nacional de Saúde está num nível de degradação inédito e não é por falta de dinheiro. As explicações são muitas, como o aumento da procura por via do envelhecimento da população, a imigração e até as doenças não tratadas na pandemia. Mas há enormes responsabilidades de quem nos governou. O envelhecimento da população, e as suas consequências nos sistemas de saúde, estava mais que estudado e previsto. Podemos dizer que não se esperava tanta imigração nem os efeitos da pandemia, mas se a resposta ao envelhecimento existisse, esses problemas não eram tão graves.
A saúde é sem dúvida o sector onde há graves erros por acção e omissão nas políticas públicas. Durante os anos em que era preciso baixar o défice enquanto se satisfaziam as reivindicações da esquerda para manter o poder, o Governo de António Costa não fez os investimentos em equipamentos e recursos humanos nem foi completando a rede de cuidados primários e paliativos. Não se fez nada e o destruiu-se até algumas coisas que funcionavam bem, como aconteceu com as parcerias público-privadas de Braga e o Beatriz Ângelo em Loures, um problema criado pela ex-ministra Marta Temido.
O sector privado está a criar problemas que tenderão a agravar-se, não por causa das PPP, mas pelo poder crescente de mercado que começa a ter, fruto do que se passa no SNS e da actuação dos privados estar a eliminar pequenas unidades de saúde, reduzindo-se a concorrência. A saúde privada começa a estar nas mãos de três grupos sem qualquer pressão concorrencial que não seja a das seguradoras – o que, convenhamos, não é o mais saudável – o que ditará inevitavelmente a subida dos preços. Aquilo que se começa a passar na ADSE pode ser reflexo desse poder de mercado que tem dificultado igualmente os serviços de saúde que algumas associações prestam. (Veremos se os próprios profissionais de saúde não estão a sentir também, e já, esse poder negocial do sector privado)
Esta herança de erros e de falta de políticas públicas e de regulação terá de ser seriamente enfrentado. É preciso organizar o SNS, investir fortemente nos cuidados primários e na literacia em saúde e reduzir o poder de mercado que os privados começam a ter. Não é uma tarefa fácil, mas é o reflexo destes anos de erros e omissões.
7 A luta pelo ambiente. Temos óptimos indicadores de produção de energia com renováveis – numa política iniciada com José Sócrates e que este Governo apenas continuou sem grande esforço, dada a rentabilidade que os projetos dão –, mas em tudo o resto é o desastre.
A redução de nossa pegada de carbono não se faz apenas através de projetos de renováveis – eles próprios também com uma pegada ambiental e social. É preciso progredir na eficiência energética, reduzir o consumo de energia. E neste domínio nada fizemos ou até piorámos. Continuamos a ser o país onde se passa mais frio no inverno e não se vai resolver o problema se o Fundo Ambiental continuar a ter aquele tipo de apoios que exigem capital próprio e conhecimentos de engenharia. Basta olhar para os prédios por este país fora e ver que é preciso muito mais do que substituir janelas e comprar caldeiras.
Temos depois o caso dos transportes públicos. Muito discurso sobre deixar de andar de carro, pouca prática e ainda menos condições. Na área metropolitana de Lisboa os transportes públicos estão piores do que estavam há duas ou três décadas, principalmente porque não se pode confiar se vão estar lá no horário. O maior desastre foi a Carris Metropolitana, com os autarcas da região a fingirem que não é nada com eles.
O caso da ferrovia mostra bem que até recuamos em matéria de transportes amigos do ambiente. Numa altura em que alguns países já estão a acabar com as viagens de avião entre cidades que ficam a menos de duas horas e meia de distância de comboio, Lisboa deixou de ter uma ligação ferroviária a Madrid. Se quisermos chegar a Madrid temos de partir do Porto e ir até Vigo, como descreve a Greenpeace. Ou seja, estamos piores do que há pelo menos meio século. E, neste momento, viajar entre Lisboa e Porto é mais barato através de autocarro do que de comboio.
Vamos ter de levar mais a sério a transição energética e o Governo, seja ele qual for, não pode ficar apenas focado no mais fácil, que é assistir aos projetos – alguns deles de sustentabilidade ambiental e social muito discutível – das grandes empresas de energia.
Finalmente a total ausência de uma política de resíduos, de tal forma que já falhamos objetivos europeus. O novo Governo vai deparar-se com aterros a abarrotar e ninguém vai querer um novo na sua localidade. Nada se fez pela reciclagem, para aumentar a circularidade – somos o país com a mais baixa taxa de circularidade. É uma das políticas ambientais em que estamos, não atrasados, mas atrasadíssimos. Foram anos em que nada se fez. E vamos ter de fazer muito mais, até porque os movimentos ambientalistas estão a ser mais exigentes e activos.
Há pedras que carregamos para 2024 que podem ser aliviadas com políticas públicas corajosas, há outras que não dependem de nós, como o caminho que a Europa vai seguir. Para o novo ano o que se deseja é um Governo que tenha coragem política. E que todos nós sejamos mais exigentes.