1. É um desconhecido conhecido.Está na política mas diz se “de fora”, utiliza frases de “efeito”, é prolixo, nunca foi provado na arena política, não tem currículo, nem programa , nem partido. Foi um ministro “jovem promessa” com lugar cativo nos palcos mediáticos. Ou seja, está no sistema, auto-proclamando-se porém fora dele. (“Fui sempre um apaixonado pela política mas nunca gostei da sociedade política. Não são as pessoas mais interessantes, há muito cinismo nelas”.)

Veio da banca (Rothchild), é jovem, enche auditórios, recruta candidatos na Net, casou com uma professora muito mais velha (mãe do seu maior amigo) e foge-lhe o pé para desabafos desconcertantes nos confessionários da media: “A poesia é mais importante que a acção que “l’on porte”, a acção sem poesia torna-se na brutalidade, não soa bem”; “para mim a política é criar, criar as formas de “liberté première…”.

Não sei o que fará a França desta espécie de banalidades enceradas.

2. Chama-se Emmanuel Macron, tem 39 anos, nunca disputou eleições mas pode ser o próximo Presidente da França. O abismo entre uma campanha carburada por auditórios repletos e sondagens felizes e a quase impossível liderança (sem tropas!) de um país exangue e em cujo mapa partidário se esvaiem os partidos ditos tradicionais e de onde se sumiu o conceito de centro político não parece impressioná-lo. Não me lembro de combate eleitoral tão simultaneamente incerto e tão tremendamente determinante para o futuro francês e para o nosso, europeus amarrados uns aos outros, numa união tremelicante e indecisa.

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Há muito que não se vivia momento sulfuricamente tão perigoso como o que se vive hoje, em França, na Europa, nos Estados Unidos e em tanto mundo, embora me pareça não haver ainda a consciência da perturbante incerteza que são os dias que correm (para o abismo, certamente)

3. E no entanto (pequeno entre-parêntesis) há optimistas. Um estudo recente de uma empresa de sondagens (IFOP) mostrou que 71% dos franceses que pensam votar Le Pen dizem-se “pessimistas” quanto ao futuro do seu país, enquanto com o eleitorado de Emmanuel Macron (maioritariamente de esquerda e de centro) sucede o oposto: 72 /% confessam “optimismo” e fé na França.

Trevas versus luz? Ressentimento versus esperança? Medo versus confiança ? Instalação versus abertura? Vale o que vale que é nada ,mas o interesse reside no facto de o optimismo do eleitorado de Macron não ser geracional. Isto é, este “optimismo” tão expressivamente confessado, vai dos 18 aos 65 anos.

4. Tudo porém no puzzle francês parece contaminado pela iminência do perigo, todas as combinações políticas nos surgem marcadas pelo selo da imprevisibilidade. E quando são já realidades, metem medo: a Frente Nacional de Marine Le Pen está a crescer. Se aumentar substancialmente o seu número de deputados (risco talvez não totalmente inverosímil), a FN poderá assumir o comando parlamentar da Assembleia. E depois? Que fará com isso e face isso outro Presidente da República que não a líder da FN?

E já agora… como me proibi a mim a mesma de não descartar nenhuma hipótese por mais absurda ou indigesta que ela se coloque no panorama político francês e europeu, já agora que seria da França a arder na fogueira dos extremismos? Entalada entre a líder lepennista — amparada numa confortável base politica –, e um presidente de extrema-esquerda como Mélenchon?

Claro que é demasiado inverosímil para ser verosímil, mas nas mais imprevisíveis — e, repito, perigosas — eleições francesas de que há memória, eis o radical Mélechon galgando velozmente os degraus na escada das intenções de voto (supostamente com alguma direita a ajudar à subida). E mesmo sabendo nós como as pessoas mentem nessas “auscultações”, eis ainda o dito Mélenchon a poder “de repente” ver-se catapultado para uma segunda volta das presidenciais. Deixando muito atrás o socialista Hamon e a sua efémera glória de modesto vencedor das primárias do PSF (suspeito até que a esta hora, face às ruínas socialistas, haja alguém no PS francês a pensar que as eleições primárias são capazes de não ter sido uma ideia assim tão boa).

5. François Fillon também se tornou num caso: não pelos casos que arrasta e para onde o arrastaram mas por ter logrado o feito de se manter no cartaz eleitoral e não apenas como figurante, antes o oposto. É um sobrevivente de si mesmo. Mas mesmo que vá longe (é como lhes digo, nada descarto) tem às costas um partido incapaz, fratricida e rancoroso que é hoje quase infrequentável. Ao contrário do que de relance — mas só de relance — possa parecer, não é só a social-democracia como a conhecemos e com a qual coabitámos durante décadas que agoniza: quem “compraria” hoje os “Les Republicans” de François Fillon, Sarkozy e os outros, mesmo que estivessem em saldo?

6. Por tudo isto e para muitos, a vitória de Emmanuel Macron pode ser um alívio só porque mete menos medo e porque é um moderado civilizado e pró-europeu (embora ninguém saiba o que ele quer politicamente. nem o que pensa sobre o que quer que seja). Mas… com que partido ganhará autoridade, peso, influência e um governo para a França – tudo enfim o que faria dele o “chefe” que não é – se só tem adeptos? Sem tropas próprias e em terreno tão minado politicamente, que poderá fazer para garantir a sobrevivência do próprio regime e combater a ameaça de implosão da V República que tanto agradaria a alguns? Dizer risco é ainda dizer pouco.

No plano externo, o mínimo: uma forte convicção europeia, a fé no euro, a confiança na revitalização do papel da França no mosaico europeu. No resto, a imprevisibilidade, a simultaneidade, a natureza dos actuais conflitos em cena — como actuará o inexperiente e francês Macron? Com que prioridades e parceiros?

Sim, não nos restam senão perguntas.

Tão grave quanto a origem tóxica do que hoje ameaça o mundo, há aquilo que Alain Touraine resumiu há dias em Lisboa: “um vazio no pensamento social e político”. Um vazio tão grande e tão vazio que não se vê quem possa saltar do palco presidencial francês (ou seja de que palco for) e começar a trocar as perguntas por respostas.

7. Que teve que acontecer à ex-gloriosa pátria francesa, hoje fragmentada, abstencionista e decadente, para chegar a esta terra política inabitável? Quem — por acção, intenção, omissão, inação — permitiu a fecunda sementeira da árvore do lepenismo e outras árvores venenosas?

Sim: só perguntas. Peço desculpa. Mas alguém tem respostas?