Pedro Lains escreveu recentemente sobre o antigo tráfico transatlântico de escravos, concebendo-o como trágica parte de uma rede de comércio global — o que é correcto — e sugerindo que Portugal e os países ocidentais em geral terão de pedir oficialmente desculpa por terem estado envolvidos nele, e prevendo, até, que esse pedido acabará por surgir futuramente. Já por diversas vezes contestei a exigência do pedido de desculpas e não vou repetir-me aqui. No âmbito de um debate que já dura há ano e meio parece-me mais útil insistir nos aspectos em que Pedro Lains tem razão, e trazer à superfície outros que ele não focou e que são, a meu ver, muito importantes.

O texto de Pedro Lains tem a grande vantagem de apontar o carácter multinacional do tráfico negreiro. O autor fala-nos em “navios saídos de Lisboa, carregados de panos vindos da Índia, usados para pagamento dos escravos na costa africana, depois traficados para o Brasil, onde os negociantes locais os pagavam com prata, adquirida a troco de ouro no Rio da Prata, na actual Argentina, prata essa que era depois remetida para Lisboa, usada para pagar os panos comprados na Índia e assim fechar o círculo”. Diz-nos que “os capitais deste comércio podiam ser portugueses, brasileiros, indianos, espanhóis, ingleses ou holandeses, seguindo os fluxos financeiros de então, cada vez mais globais”. E logo acrescenta que “nesta história, entram os comerciantes e traficantes de Lisboa e do Brasil, os traficantes africanos, os colonos espanhóis do Rio da Prata, os comerciantes indianos, e os capitalistas de várias origens. Toda uma rede global em que os africanos escravizados se viram envolvidos, enquanto elo mais fraco. Esta visão alargada do tráfico de escravos mostra a complexidade da operação e a multiplicidade das responsabilidades”.

Pedro Lains tem toda a razão quando acentua “a multiplicidade de responsabilidades”, algo que também tentei explicitar num artigo no Observador. E tem igualmente razão quando lembra que o tráfico de escravos terminou “quando era ainda negócio rentável e por deliberada acção política, guiada pelo iluminismo e pela incipiente opinião pública de então”. Há, todavia, um aspecto em que não tem razão, ou antes, em que teria sido possível e desejável esclarecer melhor o que efectivamente se passou. A visão que Lains nos transmite não é suficientemente representativa porque é concebida em termos de tráfico triangular, um conceito que só se aplica marginalmente ao caso português. A ideia, ainda muito comum entre nós — e que Pedro Lains sugere e difunde no seu artigo —, de que os navios saíam de um porto europeu, aportavam às costas africanas, viajando daí para as Américas carregados de escravos, para depois regressarem à Europa com produtos coloniais, adequa-se aos casos inglês ou francês, por exemplo, mas ajusta-se muito mal ao caso português. Quem consultar o Atlas of the Transatlantic Slave Trade (2010), da autoria de David Eltis e David Richardson, os responsáveis pela muito citada Trans-Atlantic Slave Trade Database, verificará que, dos séculos XVI a XIX, 37% das viagens de navios negreiros se iniciaram no Brasil, 31% na Grã-Bretanha, 13% em França, 5% na Holanda, outros 5% nas Caraíbas e que só menos de 4% partiram de Portugal — 3,8%, para ser mais exacto. Os restantes navios partiram dos Estados Unidos, de Espanha, do Uruguai, dos estados bálticos e, até, da própria África.

Pedro Lains não tem esses factos em devida conta. Foca-se exclusivamente nos números brutos da Trans-Atlantic Slave Trade Database para concluir, em tom de recomendação ou de exigência, que “a participação de Portugal e do Brasil, enquanto colónia, nesta gigantesca operação tem de ser entendida”. Deve, de facto, ser bem entendida, mas uma das primeiras coisas que devemos entender é que o envolvimento directo de Portugal continental nos 5,5 milhões de escravos embarcados em África com destino ao Brasil foi limitado. O tráfico no âmbito do império português fez-se quase sempre da América para África e retorno à América, sem passar por Lisboa. Quase não houve tráfico triangular no sentido literal da expressão e, para adquirir escravos na costa africana, os negreiros recorreram muitas vezes a produtos americanos, como a aguardente de cana, por exemplo. O problema do comércio de escravos é, como não me canso de repetir, um problema afro-brasileiro, no qual Portugal riscou menos do que se julga.

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Claro que poderá sempre alegar-se que no período colonial, até 1825, o Brasil foi uma possessão da Coroa Portuguesa e que, por isso, fazia tudo parte do mesmo bolo, sendo indiferente o local de onde partiam os navios negreiros. Mas é preciso perceber as circunstâncias e as nuances — e é também e sobretudo para isso que serve a História. De facto, outra das coisas que tem de ser entendida é que parte do tráfico de escravos foi feito à revelia dos interesses e directivas de Lisboa. Pense-se, desde logo, naquele que foi feito de 1825 em diante para um Brasil já independente (1,25 milhões de pessoas). Mas mesmo o que se fez anteriormente correu, por vezes, fora dos canais estipulados e desejados.

O caso mais elucidativo é o da chamada Costa da Mina, que corresponde aproximadamente à faixa litoral que vai do Gana à Nigéria. Em meados do século XVII, com Angola ainda em mãos holandesas, D. João IV autorizou os comerciantes brasileiros a irem transitoriamente à Costa da Mina adquirir escravos. Sucedeu, porém, que os baianos encontraram aí compradores para o seu tabaco de refugo, que não tinha qualquer outro aproveitamento económico. Abriram, desse modo, um escoadouro comercial importante que, para além de permitir a colocação de um subproduto da produção tabaqueira, servia de pretexto para o contrabando com holandeses, ingleses e franceses que frequentavam os mesmos pontos, nomeadamente Ajudá. Quando, nas primeiras décadas do século XVIII, a Coroa Portuguesa tentou que os brasileiros deixassem o mercado de Ajudá e voltassem ao trato em Angola, eles resistiram, alegando que em Luanda e Benguela o tabaco de refugo não teria procura e que, não podendo vendê-lo na Costa da Mina, deixariam de ter interesse em cultivar a planta, com o que todos perderiam. A Coroa teve de ceder.

É verdade que os governos e interesses de Lisboa tentaram imiscuir-se no negócio e na administração dessa nova rede escravista, mas sem grande sucesso. E sempre que procuravam impor regras e restrições àquele trato, os comerciantes da Bahia e de Pernambuco passavam a frequentar outros locais, como Porto Novo ou Onim. Assim, o poder central resignou-se à impossibilidade de quebrar esse laço e a Costa da Mina revelar-se-ia uma das mais importantes áreas do comércio negreiro, como tal permanecendo até meados do século XIX.

São todas estas coisas que devemos compreender se quisermos ter uma visão informada e equilibrada sobre o envolvimento de Portugal no tráfico de escravos. Não basta dizer, sem apresentar termos de comparação, que se embarcaram 5,5 milhões de escravos em África para os levar para o Brasil. É preciso ir além desse número bombástico, ir mais longe e mais fundo — como, aliás, Pedro Lains foi — para tentar perceber, entre muitas outras coisas, quem, como e por que razão os vendeu, e quem, como e por que razão os levou. E perceber também que, ao contrário do que por aí se diz, Lisboa não foi uma das grandes capitais do tráfico negreiro — muito longe disso.

Historiador e romancista