1 Diferentemente da generalidade dos analistas, tenho a fraqueza de pensar que o mais relevante acontecimento internacional da semana passada foi a visita do Rei Carlos III do Reino Unido à Alemanha. Falou em alemão, celebrando a ascendência germânica da dinastia britânica. E, pela primeira vez, um monarca britânico discursou no Parlamento alemão — cuja restauração, em 1945, foi em grande parte devida à resistência britânica contra o nazi-fascismo e o comunismo na II Guerra Mundial, bem como, seguramente, à resistência anti-nazi e anti- comunista dos patriotas alemães.
Deve certamente ser sublinhado o profundo simbolismo desta primeira viagem ao estrangeiro de Carlos III — que escolheu um país europeu e não um país da anglófila Commonwealth. Este simbolismo euro-atlantista teria sido ainda mais reforçado com a planeada visita inicial do Rei Carlos III a França — que teve de ser cancelada devido ao clima quase insurrecional vivido nas ruas francesas.
2 O clima insurrecional francês não é propriamente uma surpresa — acontece em França ciclicamente desde pelo menos a equívoca revolução francesa de 1789, que abriu caminho ao que Alexis de Tocqueville designou como “perpétua oscilação entre o Antigo Regime e a Revolução”.
Mas essa peculiaridade revolucionária/contra-revolucionária francesa — sobre a qual um cepticismo liberal-conservador-reformista deve ser sempre recordado — não retira a França o seu fantástico contributo cultural à civilização europeia e ocidental. Tive aliás, a este respeito, o grato prazer de receber há poucos dias o Menu do Oxford and Cambridge Club de Londres para o britânico Coronation Day (6 de Maio): o Menu está todo em francês!
Tenho a fraqueza de acreditar que este Menu em francês não exprime apenas o humilde (e, em meu entender, inteiramente justificado) reconhecimento britânico da superioridade gastronómica francesa. Julgo que ele exprimirá também, ou talvez sobretudo, o reconhecimento britânico de pertença a uma civilização mais vasta — simultaneamente europeia e atlantista, ocidental — um reconhecimento que o Brexit, que foi pacificamente e democraticamente escolhido, não deve fazer esquecer.
3 É precisamente este sentimento de pertença europeísta, atlantista e ocidental que receio estar hoje em causa no Ocidente democrático e liberal. O caso parece particularmente grave na democracia americana — que, por duas vezes no século XX, na I e na II guerras mundiais, veio salvar a democracia na Europa.
O estilo guerrilheiro de Donald Trump tinha sido até agora um dos principais ingredientes — ainda que não único — de uma radicalização grosseira da atmosfera política americana. Mas o recente anúncio pela Procuradoria de Manhattan de que o ex-presidente Donald Trump vai ser acusado criminalmente constitui um adicional factor de preocupação. Trata-se de um caso inédito na história americana de uma acusação criminal contra um ex-presidente, ainda por cima potencial candidato presidencial no próximo ano.
É certo que, numa democracia liberal, ninguém está, nem deve estar, acima da lei. É também certo que o sr. Trump fez campanha presidencial em 2016 com vergonhosos cartazes dizendo “Lock her up” — referindo-se à sua rival democrática Hillary Clinton. É caso para dizer que Trump nem sequer reclamou que Hillary Clinton fosse levada a tribunal — apelou directamente à sua prisão, talvez por decisão das chamadas “massas populares”, não de um tribunal independente. Agora, Trump está simplesmente a ser chamado a tribunal — e já está a incendiar as “massas populares” (uma expressão favorita dos comunistas e dos nazi-fascistas, bem como dos jacobinos franceses) com apelos à violência.
Ainda assim, receio que a decisão do Tribunal de Manhattan possa não ter tido em conta a prudência céptica que deve refrear a introdução de inovações radicais numa história política democrática de 250 anos. Subscrevo, por isso, o cepticismo expresso por The Economist de Londres a este respeito.
4 Ainda a este propósito de prudência céptica e de auto-controlo — que parece estar a ser ignorada nas nossas democracias — vale a pena recordar as sábias palavras de Edmund Burke, um deputado liberal-conservador-reformista que, no Parlamento britânico, criticou a revolução francesa de 1789 e defendeu a revolução anti-colonial americana de 1776 (a qual inscreveu na tradição liberal inglesa da Magna Carta de 1215):
“Men are qualified for civil liberty in exact proportion to their disposition to put moral chains upon their own appetites,—in proportion as their love to justice is above their rapacity,—in proportion as their soundness and sobriety of understanding is above their vanity and presumption,—in proportion as they are more disposed to listen to the counsels of the wise and good, in preference to the flattery of knaves. Society cannot exist, unless a controlling power upon will and appetite be placed somewhere; and the less of it there is within, the more there must be without. It is ordained in the eternal constitution of things, that men of intemperate minds cannot be free. Their passions forge their fetters.” (Edmund Burke, “Letter to a member of The National Assembly”, 1791).
Post Scriptum: Talvez uma palavra de moderação possa e deva ser acrescentada também acerca da recente evolução política em Portugal. Vejo com preocupação o tom crescentemente radical dos debates políticos entre nós, sobretudo, embora não exclusivamente, nas persistentes intervenções em tom revolucionário dos “senhores” do chamado “Chega”. Espero que seja um fenómeno sobretudo marginal, como aliás creio serem marginais os partidos que só sabem falar aos gritos e com gesticulação vulgar. Mais preocupante, todavia, parece-me ser algum radicalismo no muito necessário debate sobre os casos de pedofilia no interior da Igreja Católica. Trata-se sem qualquer dúvida de casos de imensa gravidade, mas simultaneamente não pode ser ignorado nem omitido que a Igreja revelou exemplar abertura ao nomear uma Comissão Independente para estudar o tema — cujo relatório assumiu publicamente. Há e deve necessariamente haver lugar a um debate público livre sobre esta gravíssima matéria. Mas esse debate não pode nem deve fazer concessões a um ressurgimento do reaccionário/revolucionário conflito entre clericanismo vs. laicismo, ou, como diria Tocqueville, entre Antigo Regime vs. Revolução.