Retomo hoje o tema da semana passada sobre a homenagem do Colégio da Europa, em Natolin, Varsóvia, a Mário Soares. E ocorreu-me começar pela funda distinção de Ralf Dahrendorf entre dois conceitos de democracia — que coloquei no centro das minhas aulas no Colégio da Europa neste mais recente fim de semana.

Comecei por citar Ralf Dahrendorf:

“Democracia. Nenhuma outra palavra resume melhor os sonhos dos revolucionários na Europa e em outros lugares durante os últimos 200 anos. (…) No entanto, ‘democracia’ tem dois significados muito diferentes. Um é constitucional, um arranjo através do qual é possível mudar governos sem revolução, através de eleições, parlamentos e outros mecanismos associados. O outro significado de democracia é muito mais fundamental (…) Neste outro significado, a democracia deve ser ‘autêntica’; o governo deve regressar ao povo; a igualdade deve tornar-se real. Há aqui o sonho de Rousseau sobre a ‘vontade geral’ que inspirou os revolucionários de França em 1789 — uma ‘vontade geral’ que misteriosamente levaria todos a concordar, sem recurso à força ou à coerção.”

Dahrendorf gostava de recordar em seguida que estes dois diferentes entendimentos de democracia tinham estado associados a dois tipos muito diferentes de revolução em nome da democracia. O entendimento constitucional estivera associado à chamada ‘Gloriosa Revolução’ inglesa de 1688, bem como à revolução americana de 1776 e à Constituição americana de 1787/88. O outro entendimento, mais fundamental e popular, esteve associado à revolução francesa de 1789 e, mais tarde, à revolução soviética de Outubro de 1917, bem como, em seguida, ao fascismo de Mussolini e, em parte ao ‘Estado Total’ de Carl Schmitt — todos estes em nome do povo, contra o que designavam por oligarquia dos partidos e do parlamento.

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Sobre estes dois tipos de revoluções em nome da democracia, Dahrendorf costumava dizer que a inglesa e a americana tinham sido ‘burguesas e aborrecidas’ — apenas propuseram estabelecer uma Constituição demo-liberal. A francesa e a soviética, por contraste, tinham sido ‘populares e excitantes” — tinham-se proposto mudar o mundo e os modos de vida habituais.

Acontece que, nas revoluções ‘burguesas e aborrecidas’, os revolucionários morreram pacificamente na cama — e não houve mais revoluções nem mudanças de ‘regime’, apenas alternância pacífica entre partidos e políticas rivais.  Nas revoluções ‘populares e excitantes’, os revolucionários perseguiram-se e mataram-se mutuamente em purgas sucessivas — acusando-se mutuamente de terem ‘traído’ o ideal e/ou o projecto revolucionário.

Além disso, nas revoluções ‘populares e excitantes’, ficou o hábito peculiar de as divergências políticas serem apresentadas em termos de “mudanças de regime”. Alexis de Tocqueville descreveu esse hábito peculiar como “o eterno conflito entre o Antigo Regime e a Revolução, entre a opressão e o abuso”. Em contrapartida, nas revoluções  ‘burguesas e aborrecidas’, as conversas sobre ‘mudanças de regime’ são percepcionadas como terceiro-mundistas e embaraçosamente ridículas.

Ralf Dahrendorf sugeriu então uma possível explicação para as profundas diferenças entre as diferentes consequências dos dois tipos de revolução em nome da democracia. A revolução burguesa e aborrecida tinha-se revelado pacífica porque se centrara em regras gerais, não em resultados finais. A revolução popular e excitante, quer comunista quer nacional-socialista, tinha-se revelado violenta porque se centrara em resultados finais.

Postscriptum: Homenagem a Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo. O funeral  de Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, foi uma cerimónia comovente que merece ser re-visitada por quem possa não ter acompanhado em directo. Aí pode ser encontrado o profundo sentido de dever da monarquia constitucional britânica para com os princípios constitucionais da liberdade sob a lei. “An exceptional man who embraced duty”, era o título do editorial do Telegraph de domingo passado.