A Psiquiatria é, ainda hoje, uma especialidade médica olhada com desconfiança e preconceito por muitos, quer na comunidade médico-científica, quer na população em geral. É, também, comum e erroneamente associada a esoterismos e misticismos. Como resultado desta percepção desajustada, um marcado e lamentável estigma pende sobre os doentes psiquiátricos, contribuindo para a sua alienação social. Assim surge a renitência das pessoas em recorrerem prontamente à psiquiatria quando se encontram em sofrimento mental (por receio da conotação pejorativa associada à especialidade) ou o desconforto em assumirem perante amigos e/ou familiares que são doentes ou precisam de ajuda.
Uma das principais razões por que a psiquiatria continua a ser para muitos enigmática é a incompreensão e a recusa generalizadas de que nós (seres humanos) somos cérebro. A nossa personalidade e, portanto, a forma como agimos, reagimos e nos emocionamos é resultado do funcionamento desse órgão. Isto não quer dizer que não sejamos influenciados por factores vivenciais. Aliás, o que torna, talvez, o cérebro idiossincraticamente complexo e distinto dos outros órgãos é o facto de o seu desenvolvimento ser afectado pelas vivências sociais. Por exemplo, um hepatócito (célula do fígado) não verá a sua função ou desenvolvimento directamente comprometidos se uma criança presenciar ao longo do seu crescimento discussões frequentes e violentas entre os pais. Contudo, o desenvolvimento neuronal, consoante a maior ou menor resiliência genética do indivíduo, poderá ser mais ou menos afectado e condicionar a construção de uma personalidade com maiores ou menores fragilidades. Por isso um ambiente sócio-familiar saudável é tão importante para a edificação de um adulto mentalmente capaz de lidar com as agruras da vida, minimizando, assim, a probabilidade de eclosão de uma doença psiquiátrica.
Morremos quando há morte cerebral, precisamente porque só nesse momento a nossa personalidade (o nosso Eu) desaparece definitivamente.
Dado que a personalidade, as emoções e os comportamentos têm um substrato orgânico, facilmente se compreenderá que uma alteração da homeostasia do meio corporal interno (por exemplo, devido a uma infecção renal) poderá precipitar sintomatologia psiquiátrica secundária. Desta forma, particularmente em doentes idosos, é imprescindível excluir uma etiologia médica não psiquiátrica perante alterações súbitas do comportamento e/ou das emoções.
Somos, repito, cérebro. Mas, não se pense, porém, que o tratamento das doenças psiquiátricas é exclusivamente biológico. As enfermidades psiquiátricas exigem a prestação de cuidados holísticos que compreendem abordagens biológicas e psico-sociais. Infelizmente, renegada a “parente pobre da Medicina”, a Psiquiatria continua a ser vítima de um subfinanciamento crónico castrador da exigível disponibilidade de todas as terapêuticas para todos os doentes. Persistem, por exemplo, assimetrias na acessibilidade a determinados tratamentos biológicos (p.e. eletroconvulsivoterapia) e a valências como Hospital de Dia ou centros de reabilitação e reintegração sócio-profissional.
Em suma, é importante aceitarmos definitivamente que as complexas doenças psiquiátricas resultam de uma disfunção (transitória ou permanente, provocada por factores internos e/ou externos) de um órgão concreto, o cérebro, e perceber que quem delas padece não é louco, apenas doente.