1 Este artigo não é sobre a decisão instrutória da Operação Marquês. Bem vistas as coisas, este artigo também não é sobre o magistrado judicial que anda nas bocas do mundo. Este texto é sobre a Democracia. É sobre a independência do Poder Judicial e a separação de poderes — dois princípios de qualquer democracia representativa digna desse nome.
Numa altura em que existe um verdadeiro alarme social com a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa — é uma constatação, não é uma crítica ao magistrado — e em que mais de 183 mil pessoas já assinaram a petição que pede o “afastamento de toda a magistratura” do magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal, é importante recordar algumas questões básicas da Democracia. Sim, da Democracia porque as regras que regem o poder judicial ultrapassam a mera corporação judicial. Têm a ver com todos os cidadãos.
Num Estado de Direito, os juízes são titulares de órgão de soberania e independentes entre si. Há categorias de diferentes magistrados (juízes de direito, desembargadores e conselheiros) mas não existe, ao contrário da magistratura do Ministério Público, uma relação hierarquizada em termos de análise e decisão judiciais.
2 Isto é, e dando exemplos práticos para melhor compreensão, o juiz Ivo Rosa não pode receber ordens do presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa ou até mesmo do presidente do Supremo Tribunal de Justiça — o líder máximo do poder judicial que, por inerência de funções, lidera o Conselho Superior da Magistratura (o órgão de gestão e disciplinar de todos os juízes).
Continuando nos casos práticos. O dr. Ivo Rosa (ou qualquer outro juiz) também não pode ser sancionado disciplinarmente pelo Conselho Superior da Magistratura (CMS) pelo mérito (ou demérito) das suas decisões. Chama-se isso o princípio da irresponsabilidade, no sentido em que não podem ser responsabilizados pelos despachos, sentenças ou acórdãos que decidem.
Outra matéria completamente diferente é a avaliação a que todos os magistrados estão sujeitos, mas este não é o texto adequado para abordar essa matéria.
3 E perguntará o leitor: “essas regras (e sem abordar as classificações) fazem sentido quando o dr. Ivo Rosa vê regularmente decisões suas serem revogadas pela Relação de Lisboa?”. Sim, fazem. Total e absolutamente. E estou perfeitamente à vontade para o fazer porque tenho sido autor de muitas dessas notícias sobre as decisões daquele tribunal superior.
Essa é a melhor forma de todos os magistrados decidirem e julgarem de forma livre e consciente os processos que lhes são distribuídos. Sem condicionalismos de qualquer espécie e sem receio de qualquer tipo de consequências pelas decisões que tomarem — seja qual for o sentido.
Há uma regra igualmente essencial — e diretamente ligada ao tema da petição: a inamovibilidade. O que significa este palavrão? Quer dizer que os juízes não podem ser transferidos por conveniência de serviço, precisamente para preservar a sua independência face não só ao poder político mas também face ao poder judicial de que fazem parte. Serve essencialmente para os proteger das pressões exteriores.
No tempo da Ditadura, existia um Conselho Superior Judiciário — o órgão de auto-governo da magistratura judicial criado em 1912 e que antecedeu o CSM — que mais não era do que um órgão controlado pelo ministro da Justiça que servia para fazer uma gestão e controle político de toda a magistratura. Também o Ministério Público não só era uma carreira vestibular da magistratura judicial, como estava submetido ao poder hierárquico do Poder Executivo, fazendo parte da administração.
Resumindo e concluindo: as decisões do juiz Ivo Rosa (ou de qualquer outro juiz) são, e bem, escrutinados dentro do próprio sistema judicial pelos tribunais superiores. São outros juízes, desembargadores e, se for necessário, conselheiros, que avaliam o mérito das decisões daquele magistrado. Uma vez mais, será o Tribunal da Relação de Lisboa a fazê-lo. E confiar na Justiça, não significa que esteja à espera de determinada decisão. Significa, sim, respeitar qualquer que seja a decisão.
4 Não é com petições, protestos ou manifestações populares que vamos conseguir construir um melhor sistema judicial. Pelo contrário, se a justiça popular e o arbítrio se substituir à justiça dos tribunais, não teremos uma Democracia. Teremos uma nova Ditadura.
E quem fala da independência do Poder Judicial, fala igualmente das liberdades e garantias de defesa dos cidadãos. Tenho criticado regularmente o desequilíbrio que existe no nosso sistema judicial entre os cidadãos com poucos recursos e os que têm mais poder financeiro e social. Mas tal não significa que eu seja a favor de uma redução drástica das garantias de defesa.
Sou, sim, a favor de um sistema judicial mais eficiente, equilibrado e pragmático em que as liberdades e garantias permitam um tratamento equilibrado do cidadão que esteja a ser perseguido mas também uma Justiça célere e percecionada por todos os cidadãos como tendo sido justa. Em todas as áreas, nomeadamente na área económico-financeira.
Para tal, é preciso estar muito atento nas próximas semanas. Receio que o alarme social criado pela decisão instrutória do dr. Ivo Rosa — volto a repetir que é uma constatação, não é uma crítica — vá servir como desculpa para que determinados políticos executem a sua vendetta pessoal contra o poder judicial.
Em vez de assinarem petições que não respeitam a lei, seria melhor que os mais de 183 mil cidadãos colocassem o seu foco nestas matéria, nomeadamente na discussão parlamentar da Estratégia Nacional Contra a Corrupção. É muito importante que estejamos atentos.
Goste-se ou não das decisões do juiz Ivo Rosa.
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