Num muito interessante texto publicado aqui nas páginas do Observador, em 23 de março p.p., intitulado “Um erro histórico?”, Francisco Pereira Coutinho e Teresa Violante vie­ram sustentar a tese de que “os juízes do Tribunal Constitucional estariam impedidos de se pronunciar sobre a constituci­onalidade das medidas incluídas nos orçamentos apro­vados durante o período do res­gate” uma vez que, “nas palavras do próprio Tribunal Constitucional, o memorando de entendimento assinado em 11 de maio de 2011 com a Comissão Europeia constituía um instrumento jurídico vinculativo para o Estado portu­guês, que estaria obrigado a cumprir as medidas nele incluídas sob pena de não ter acesso a financiamento externo”. E dão como exemplo a decisão do Tribunal Constitu­cional de 5 de julho de 2012, quando os juízes do Palácio Ratton se pronunciaram sobre os “cortes” dos subsídios de férias e de Natal, medidas não previstas no memorando de entendimento mas incluídas no primeiro orçamento de Estado aprovado depois do iní­cio da intervenção externa, declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional por serem provenientes “de uma fonte exclusivamente interna (isto é, a vontade do legislador nacional), pelo que poderiam ser objeto de fiscalização (e chumbo) constitu­cional”.

Atribuem os autores citados tal facto a um manifesto lapso do Tribunal Consti­tucional que, no momento do julgamento da constitucionalidade dos cortes citados “es­taria, muito provavelmente, a olhar para a versão original do memorando e não para a versão atualizada de 9 de dezembro de 2011 ou a subsequente de 15 de março de 2012, resultantes da segunda e terceira avaliações da ‘troika’”; isto porque, “ao contrário do que afirmou o Tribunal Constitucional, o memorando de en­tendimento previa, efetiva­mente, a suspensão do pagamento dos subsídios, detalhando pormenorizadamente o esquema de cortes que deveria ser adotado pelo legislador na­cional. […] apesar de se ler, na decisão, que o memorando não previa aqueles cortes, o certo é que os mesmos se encontravam, concreta e detalhadamente previstos, naquele documento [(no pará­grafo 1.8., i), da versão em vigor à data da entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2012 e, na versão resultante da terceira revisão, de 15 de março de 2012, no ponto 1.5)]”. E, assim, concluem os autores citados que “se o memorando é direito da União Europeia vin­culativo […] então, muito simplesmente, esta instância não podia decidir sobre a constitucionali­dade das medidas nele previstas sem primeiro consultar, a título prejudicial, o Tribu­nal de Justiça da União Europeia. Com efeito, uma das regras básicas do direito da União Europeia funda-se neste dever de reenvio para o Tribunal de Justiça sempre que um tribunal nacional de última instância se confronte com dúvidas quanto à validade do direito da União Europeia que tem de aplicar ao caso concreto que foi chamado a resol­ver”.

Ora, com o devido respeito, é aqui que entra a nossa discordância com o texto em apreço e com a tese nele sustentada. Não nos custa admitir que o Tribunal Constitucio­nal, na apreciação que fez do Memorando de Entendimento tenha considerado um do­cumento que, à data da sua pronúncia, já havia sido alterado uma ou duas vezes e que, por isso, já não era o texto que estava efetivamente em vigor. Já nos suscita as maiores reservas que tal Memorando possa ser considerado – mesmo pelos nossos juízes consti­tucionais – como direito da União Europeia.

No plano dogmático, o direito da União Europeia classifica-se, pela doutrina mais repre­sentativa, como direito primário e direito derivado. O direito primário, de raiz ou matriz internacionalista, é constituído pelos Tratados fundacionais das Comunidades e da União, pelos Tratados subsequentes que vieram alterar estes Tratados e pelos Tratados de adesão que, ao longo do tempo, foram sendo assinados com os Estados que foram aderindo às Comunidades e à União. O direito derivado, por seu turno, é constituído pelas normas jurídicas produzidas pelas institui­ções da União, ao abrigo daquelas normas de direito originário, de acordo com proces­sos legiferantes ali previstos e que se consubstanciam, basicamente que não exclusivamente, em regulamentos, em diretivas e em decisões.

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Ora, salvo outra e melhor opinião, o Memorando de Entendimento assinado em 11 de maio de 2011 com a União Europeia não é um Tratado europeu que possamos enqua­drar no âmbito do direito comunitário primário, da mesma forma que não se enquadra em qualquer das fontes de direito previstas no Tratado de Lisboa (não é uma decisão; não é uma diretiva; não é um regulamento). Assim, a esta luz, como poderemos qualifi­car o referido Memorando de Entendimento?

Independentemente de outras respeitáveis opiniões e análises, doutrinárias e jurispru­denciais, cremos ter sido, basicamente, um documento político, (que não jurídico) ou­torgado entre a Comissão Europeia e Portugal, mediante o qual, de forma exaustiva e detalhada, foram enunciadas as medidas (políticas, legislativas e administrativas) que Portugal teria de tomar e adotar para poder aceder ao financiamento externo que lhe foi concedido. A fonte imediata de tais medidas, das medidas que corporizaram a dita austeridade, foram sempre atos políticos, legislativos ou administrativos de direito in­terno e nunca o referido Memorando de Entendimento. Simplificando – qualquer me­dida que estivesse prevista no Memorando de Entendimento só seria válida e eficaz se transposta para a ordem jurídica interna através de um ato de direito nacional. Dito de outra forma, nenhuma medida prevista no referido Memorando de Entendimento go­zaria da chamada aplicabilidade direta nem, tão pouco, do efeito direto que caracteri­zam o mais importante e relevante direito da União Europeia.

Não se nos afigura, assim, que tenha andado mal o Tribunal Constitucional ao conhecer em diferentes momentos das diferentes medidas austeritárias tomadas pelas autorida­des portuguesas em aplicação e para concretização do Memorando de Entendimento. As medidas neste previstas nunca seriam diretamente aplicáveis no nosso direito in­terno; careceriam, sempre, da intermediação ou transposição de normas jurídicas naci­onais, as quais deveriam submeter-se a uma dupla conformação (como acontece com qualquer ato legislativo ordinário): a conformação com a Constituição da República e a conformação com o direito comunitário (que não é o mesmo que conformação com o Memorando de Entendimento).

É verdade, concedemos sem qualquer favor, que “durante anos, a sociedade portuguesa esteve dividida em dois lados opostos: de um lado, os defensores convictos da jurispru­dência constitucional; de outro, os seus críticos ferozes, que acusa­vam o Tribunal Cons­titucional de ser uma “força de bloqueio” e de colocar em risco o sucesso do programa de ajustamento”.

Dito isto e chegados a este ponto, impõe-se equacionar uma última questão: estaria o Tribunal Constitucional impedido de suscitar, a título de reenvio prejudicial, a interven­ção do Tribunal de Justiça da União para análise da conformidade das medidas adotadas pelas autoridades nacionais com o direito da União Europeia (que não com o Memo­rando de Entendimento)? Cremos que a resposta é óbvia e intuitiva – não! Os juízes do Palácio Ratton poderiam, sempre, e deveriam (!) ter convocado o Tribunal do Luxemburgo para que este averiguasse se as medidas austeritárias adotadas pelas autoridades portuguesas, em execução do Memorando, estariam ou não conformes com o vasto acervo comunitário. E andaram mal não o fazendo.

Desde logo por uma questão de prudência; depois por­que, sustentando nós o caráter supraconstitucional do próprio direito comunitário (tese que sabemos não pacífica e que, por norma, ainda divide e separa constitucionalistas de co­munitaristas) não bastaria que tais medidas adotadas em execução do Memorando se conformassem (ou não) unicamente com a Constituição da República Portuguesa; exigir-se-ia, por igual, uma conformação dessas mesmas medidas com o referido acervo comunitário. E esse escrutínio ficou por fazer. E a responsabilidade, aí, foi única e exclusivamente do nosso Tribunal Constitucional.

Esse sim, salvo outra e melhor opinião, foi o erro ou a omissão histórica que este pro­cesso nos legou.

Advogado. Mestre em Estudos Europeus; Investigador e Comentador de Assuntos Europeus; Ex-Docentede Direito Comunitário na UIFF, IPT e ISCIA