Com o tom de um longínquo, porém imorredoiro romance. Assim enlaçam os infatigáveis espíritos revolucionários o louvor àquele arquipélago caribenho, terra de “gente pobre, mas feliz”. Sobretudo pobre. Um povo em quase permanente comunhão com os seus libertadores e Comités de Defesa da Revolução: “¡En cada barrio, Revolución!”. Revolução e fome. Sobretudo fome.
O embargo, que lhes tolhe a voz e a mente, é, pois, a causa. A causa de o comunismo não resultar no único sítio deste reacionário planeta onde certamente resultaria, não fosse o embargo. Ou seja, o comunismo não desabrocha nos amanhãs que cantam devido ao embargo dos Estados Unidos da América, farol, por excelência e senioridade, do mundo globalizado e do comércio livre. Porventura, houvesse o embargo sido levantado, teria o antigo Rei-Sol da ilha – Fidel I – mais umas quantas riquezas, abrindo a válvula estatal com que, previsivelmente, controlaria esse universo de riquezas.
Terão, quiçá, razão na feroz crítica ao embargo americano, que, ano após ano, tem merecido veemente condenação da ONU. Aliás, o embargo pode, inclusive, ser o garante do regime ditatorial cubano, o cimento que une – ou unia – parte da população ao redor da propaganda antiamericana. A arma, de gatilho rápido, a arremessar contra o mundo ocidental sempre que alguém questiona o respeito pelos direitos humanos que aos cubanos o seu governo (não) reserva. O levantamento do embargo permitiria uma condenação em uníssono – dos países onde os direitos humanos têm um significado palpável – da miserável repressão a que, hoje como dias após a revolução, o povo cubano é sujeito.
O embargo não é, nem poderia ser, a raiz de todos os males, como preconizam os ditadores caribenhos e seus defensores ocidentais (nunca acidentais). Um embargo que não impede Cuba de negociar com a maior parte do mundo, nem impede o governo cubano de, desde 2001, importar produtos agrícolas dos EUA, que ocupou, em 2019, a quinta posição na lista de países dos quais Cuba mais importa. Não será o embargo sob o qual o governo cubano subjuga o país mais prejudicial? Aquele que apenas em abril deste ano atenuou (via a aplicação de um regime kafkiano) a proibição, vigente deste 1963, de matar gado para consumo próprio ou venda a outrem, que não o Estado. Aquele que originou a não descabida piada de que se apanha mais tempo de prisão por matar uma vaca, do que um ser humano.
Os nossos “ativistas” – ungidos pela filiação ou aproximação a partidos, juventudes partidárias, centrais sindicais ou demais associações do bem, das causas –, os que, através de furiosos bits e bytes, doutrinam a pureza e incontestabilidade da sua moralidade ideológica, têm deixado um rasto de indelével incongruência. O típico: “Sim, podem-se tecer algumas críticas a Cuba, mas …”. Mas … e os verdadeiros ativistas cubanos? De que lado se posicionam os nossos ativistas de passerelle? Do lado de Dina Stars – youtuber detida a meio de uma entrevista para uma estação espanhola –, e de outros, como José Daniel Ferrer, Luis Alcantara, Amaury Pacheco e Guillermo Fariñas, também eles detidos? Ou do lado do repressivo regime que os encarcerou, em clara violação da sua liberdade de expressão? Liberdade ou comunismo? Direitos Humanos ou espancamentos, restrições de viagens, humilhações públicas, prisões e vigilância? Seria de pensar que a resposta emergiria como trivial para quem não deixa de constantemente manusear “liberdade” e “Direitos Humanos” como pedras basilares das suas ideias. No entanto, tal não se verifica nos nossos ativistas de passerelle.
O PCP, hoje como sempre, cá como lá, manteve-se fiel aos seus mandamentos: ingerência, imperialismo, bloqueio económico. De forma objetivamente bizarra, o PCP “salienta o exemplo de coragem e dignidade de Cuba e do povo cubano”. Subjetivamente, nada de novo: entenda-se por povo, a título de exemplo, os 150 cubanos leais ao regime comunista, que reprimiram a manifestação. Depreende-se a existência de somente um tipo de “liberdade” pela qual se pode e em função da qual se deve uma pessoa manifestar.
Todo o leque de reações da extrema-esquerda – incluindo a do PS e JS – desvela, mais uma vez, uma verdade profunda: a esquerda radical não se preocupa verdadeiramente com ativismos ou liberdade. Melhor, preocupa-se que ativistas e liberdade sejam a estalactite das grutas da revolução. Caso contrário, não há povo que não esteja a soldo do imperialismo norte-americano, causas que não sejam reacionárias, homossexuais que não passem, afinal, de homonacionalistas.
Longe de mim, e de alguém com bom senso, insinuar que marxistas e neomarxistas não desejam uma sociedade melhor. Pois claro que o fazem. Mas não melhor no sentido de ser mais livre ou inclusiva. Melhor, à sua vista, é sinónimo de anticapitalista, controlada, monolítica.
E daqui a uns meses, em abril, lá estarão, juntos, a clamar e marchar pela liberdade. Aqueles para quem a liberdade é um instrumento para justificar a libertação. Para provar que, além do negro pântano capitalista, lá nas planícies douradas do comunismo, existe um depois da revolução. Um depois, ensina-nos a História (como a cubana), não muito livre.
Triste romance este proporcionado pelos amantes de liberdade em abril, seus detratores durante o resto do ano. Enfim, não faltará o paraíso na terra, o verdadeiro comunismo.
Teremos sempre Havana. Teremos mesmo?