Os eventos do 31 de março de 1964 no Brasil parecem condenados a eterna controvérsia. Volvidos 57 anos desde que os militares assumiram o poder, as interpretações do episódio permanecem variadas. Resquício da Guerra Fria, a componente ideológica continua a dominar análises e a distorcer conclusões. Tal fenómeno repercute sobre o plano político-partidário, onde interpretações do episódio costumam servir tanto de apologia aos personagens da época como de bandeira aos atuais militantes. Em meio a tantos interesses, a realidade dos fatos parece ser o menos importante.

Contudo, apesar da polémica envolvente ao regime militar no Brasil (1964-1985), uma verdade parece incontestável: naquele conturbado início de 1964, a maior das vítimas foi a democracia liberal. Atacada à direita e à esquerda, a população ou os políticos de então não lhe reconheciam grande valor. Era ambiente oposto ao atual. Hoje, o apreço pela democracia parece ter atingido o paroxismo. Sob essa ótica, o mero retorno dos generais aos ministérios, ainda que para integrarem o governo civil e eleito de Jair Bolsonaro, tem sido interpretado como uma ameaça ao regime democrático.

Tal leitura não é sem pedigree. O cientista político Yascha Mounk conclama os brasileiros para a necessidade de lutarem pela sobrevivência da democracia liberal. No prefácio à edição brasileira do seu livro O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la, ele escreve que “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século”. Contudo, ao atribuir o protagonismo antidemocrático ao atual presidente do Brasil, Mounk peca ao subavaliar o legado perverso dos anteriores.

Os cinco grandes campos mediadores que permitem a consolidação democrática, conforme defendido pelo cientista político espanhol, Juan J. Linz, já vinham sendo degradados pelo projeto de poder do Partido dos Trabalhadores (PT). Elementos estruturantes da sociedade civil, da sociedade política, do Estado de Direito, da máquina estatal e da sociedade económica estavam sob forte ataque. O boom de commodities e a descoberta de vastas reservas de petróleo deram a confiança necessária visando metas ambiciosas. Desrespeitar normas que colocassem em risco a nascente democracia não foi obstáculo para os pragmáticos petistas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No âmbito doméstico, o governo Lula da Silva era uma voraz máquina de corrupção, que buscou alimentar-se de todo o tecido político, social e económico brasileiro. Com o Estado a tudo tragar para dentro de si, sob os governos do PT, a democracia brasileira caminhava a passos largos para assumir uma forma gerenciada, ou soberana, conforme denominação preferida pelo ideólogo do regime de Vladimir Putin. Trata-se daquela, na qual o Estado é livre para definir as regras do jogo político e as liberdades civis.

Em política externa, a proximidade a lideranças autoritárias na América Latina, África e Oriente Médio obedecia à estratégia de Lula da Silva de moldar uma nova arquitetura financeira mundial. Seduzidos pela miragem de poder que uma suposta ordem multipolar reservaria ao Brasil, na qualidade de potência regional, os governos do PT ignoraram as violações aos direitos humanos cometidas pelos novos aliados, como o Irão de Mahmoud Ahmadinejad e a Venezuela de Hugo Chávez. Durante os seus governos (2003-2016), o desrespeito pela democracia liberal jamais foi obstáculo ao engajamento do Brasil no exterior.

Apeado o PT do poder, aqueles que toleraram, quando não promoveram, a corrupção da política e aproximação do Brasil a regimes autoritários, agora posam de guardiões da democracia. Não cansam de denunciar que Bolsonaro estaria preparando um autogolpe, visando  implantar um regime autoritário. Contudo, já não lhes resta muita credibilidade e suas reais intenções são por demais patentes: sem projeto viável para resolver os problemas que eles mesmos criaram, resta-lhes, como última cartada, denunciar o risco de rutura institucional.

A obsessão pelo golpe, no entanto, tem método. Experiências mundiais demonstram a conveniência revolucionária de aproveitar momentos de instabilidade para implantar regimes que invariavelmente desembocam em supressão das liberdades e matança de opositores. No Brasil de hoje, muitos daqueles que alardeiam palavras de ordem do tipo “ditadura nunca mais”, candidamente denominam a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela de “democracia”.

É verdade, Bolsonaro é um ex-militar tosco, que está longe de representar a tradição das Forças Armadas do Brasil de fornecer quadros de alto nível para as instituições do Estado. Da mesma forma, não é um democrata convicto. A emular práticas do lulopetismo de aparelhamento da estrutura burocrática estatal, o bolsonarismo é a versão à direita do patrimonialismo que esteve na base dos governos do PT. O lema “liberal na economia e conservador nos costumes” da época da campanha eleitoral não resistiu às provocações do poder quando tomou posse do cargo. Na prática, Bolsonaro governa sob os princípios do populismo do qual Lula da Silva se mostrou exemplar.

Enquanto ameaça à democracia, Bolsonaro difere pouco ou quase nada dos seus opositores.  O atual presidente não é a fonte da ruína das liberdades no Brasil. Antes, pode ser considerado consequência do processo de degradação das instituições democráticas perpetrado por seus antecessores. A crise económica sem precedentes na história republicana brasileira, combinada com a máquina de corrupção que operava em escala massiva durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, produziu o ambiente de conflagração que dividiu o país.

Abraçar o discurso populista do atual presidente parece ter sido a forma que o brasileiro encontrou para reviver o “pacto moderador”, denominação cunhada pelo cientista político americano Alfred Stepan para descrever as relações entre civis e militares no Brasil, no período de 1945 a 1964. Nos momentos de maior tensão, os militares tinham a função conservadora de manutenção do sistema. A atuar como árbitro ou juiz, nunca como governante, sua missão se restringia a depor chefes do executivo considerados inaptos para o cargo e devolvê-lo aos civis.

Em 1964, a rutura do compromisso não escrito e a implantação da ditadura na sequência, no geral, foi uma experiência negativa para a instituição das Forças Armadas do Brasil. Ainda que Bolsonaro desejasse, parece impossível a reconstrução do “pacto moderador” visando um golpe de Estado. Responsavelmente, tanto a sociedade como os militares não aprovam tamanho disparate.

Naquela época, o autoritarismo funcionou como o mal necessário para impedir o caos. Remédio amargo, a rutura institucional pelos militares gozava de aprovação de parcela considerável da sociedade. Hoje, não há hipótese de a história se repetir, nem como farsa nem como tragédia. É preciso muito esforço de imaginação para acreditar que a democracia brasileira esteja à beira do colapso pelas mãos de Bolsonaro, embora não sejam poucos aqueles que se comportem como carpideiras em busca de um cadáver para derramar o pranto à espera de faturar politicamente.

A democracia não deve ser considerada uma conquista definitiva, sobretudo no Brasil em que as instituições tendem a refletir as divisões radicais da sua sociedade política. Num contexto mundial, em que o autoritarismo atrai cada vez mais a atenção dos governantes, mostrando-se capaz de rivalizar com a democracia liberal como provedor do desenvolvimento, o Brasil deve preocupar-se em manter firmes os pilares de suas instituições democráticas. Muitos são os que defendem a democracia no país, mas, paradoxalmente, a democracia brasileira parece necessitar de alguém que a defenda daqueles que se dizem seus defensores.