Passou uma semana, e as eleições de 30 de Janeiro continuam a enganar os comentadores. Enganaram antes, quando ninguém esperava a maioria absoluta do PS, e enganam depois, quando até os derrotados parecem decididos a inventar motivos para festejar a maioria socialista.

Não, o PS não vai fazer agora as “reformas estruturais” que não fez desde 2015. O PS não é um partido reformista que por acidente tivesse estado refém do PCP e do BE. Se dependeu deles, foi porque quis. Durante quatro anos, Rui Rio ofereceu-lhe o PSD como parceiro alternativo, precisamente para fazer reformas. O PS nunca o ouviu. Só se espantará quem tiver muita vontade de se espantar. Em 1995, o PS chegou ao poder para pôr termo ao reformismo cavaquista. Nos dez anos anteriores, votara contra 70% da legislação que permitiu coisas como canais privados de televisão. O PS não se opõe à internet ou às autoestradas. Mas opõe-se a quaisquer reformas que mudem a relação entre o Estado e a sociedade civil, no sentido de uma maior autonomia da sociedade civil. A governação socialista multiplicou os dependentes de um Estado que por sua vez depende do BCE e da UE: dependentes directos (funcionários, reformados) e indirectos (empresários que vivem de contratos públicos, trabalhadores cujos salários são fixados politicamente). Com todos eles, o PS formou uma massa eleitoral disciplinada através do medo: umas vezes, assusta-os com os “cortes” da direita, outras com as “loucuras” da extrema-esquerda. O PS não vai renunciar a este poder, que até hoje só foi vulnerável aos credores internacionais.

Não, a extrema-esquerda não desapareceu nem está a desaparecer em Portugal. As organizações partidárias que fixavam a opinião de extrema-esquerda fora do Partido Socialista, essas sim, podem estar em quebra ou até em extinção. Mas o declínio do PCP e do BE, a confirmar-se, significa apenas que a opinião radical estará a passar para dentro do PS. É o que acontece em outros países. Na Grã-Bretanha, Jeremy Corbyn não foi líder de um partido comunista; nos EUA, Bernie Sanders não dirige um bloco de esquerda. Nesses países, a extrema-esquerda está tradicionalmente alojada nos grandes partidos de governo, Trabalhistas e Democratas, disputando a sua direcção e determinando as suas políticas. Trocou a autonomia partidária por influência governativa. É o que a extrema-esquerda portuguesa pode estar inclinada a fazer. Se for esse o caso, o que teremos é uma maior e não uma menor ascendência da extrema-esquerda na vida portuguesa, nomeadamente através da guerra cultural à americana, a que o PS já aderiu, e da resistência por motivos ideológicos, e não apenas de expediente, a qualquer liberalização. As Catarinas Martins do futuro serão secretárias de Estado socialistas. Deveremos estar por isso menos preocupados?

Finalmente, há quem ainda consiga atribuir este efeito salutar à maioria absoluta: vai responsabilizar o governo socialista. Já não terá desculpas. Estão certos disso? Responsabilidades e culpas políticas não existem por si: é preciso que alguém faça a sua boa cobrança. Um poder só é responsável quando tem limites e alternativas. Ora, basta olhar para a direita, em processo de se repartir em caixinhas ideológicas aos gritos entre si, para perceber que ninguém por esse lado estará em condições de cobrar nada. Resta o presidente da república. Antes das eleições, António Costa indigitou-o como contrapeso a uma eventual maioria absoluta; após as eleições, e obtida a maioria, cancelou a indigitação: ele, António Costa, é que será o árbitro e o juiz da maioria absoluta. Estão surpreendidos? Sabemos como os socialistas governaram entre 2005 e 2009. Já repararam que são os mesmos?

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