1 O papel? Corro de risco de qualquer dia nem perceberem o que digo. “Em papel? Ah as fotos são para imprimir em papel?” O espanto era imenso, a minha paciência, pequeníssima. A parede que subitamente se erguera entre o meu pedido e o espanto da empregada da loja , ficará como a mais eloquente das fotos — sem carecer de impressão – do mundo “do” hoje. Levo os dias a lidar com uma atitude de automático repúdio por tudo o que não é um produto, um uso, um artefacto exclusivo “do” hoje. E lido também com uma compaixão tingida de ironia. Sub-entendido: ah coitados dos que destoam, porque deles não será a nova era.

“Sim as fotos são todas para fazer em papel” respondi eu sem grandes ilusões sobre a definitiva derrota do meu mundo e a implacável aterragem — com excesso de velocidade — do outro. Enquanto me assaltava a dúvida sobre se haveria de começar a cantar ali mesmo um hino ao papel, propósito que só poderia vir a ser entendido como um (entediante) despropósito.

2 O hino era uma vibrante, vigorosa lembrança ao que de tão precioso o papel conserva e regista; ao que de tão insubstituível ensina e acolhe. Ao que de indispensável transmite. A tudo o que não teríamos sabido, nem conseguido, nem sido, sem ele. Na era do imperador telemóvel, achar-se-á o este canto um confrangedor lugar comum, mas não é. O melhor que me aconteceu no ano passado foi o ter visitado uma das mais prodigiosas “casas de papel” que vigoram neste ansioso mundo. Sem essa “casa”, as centenas e centenas de anos de história universal que ela guarda e que nesse dia de Maio de 2019 eu visitei, não teriam tido “existência” comprovada. Não se teria escrito história, nem teria ficado legado. Falo do Arquivo e da Biblioteca do Vaticano, onde fui conduzida pela mão sábia — e generosíssima, pacientíssima, afectuosíssima – do Cardeal Tolentino, então Arcebispo de Suava. E como foi bom estar ali dentro, no meio de tanto papel com tanta idade. Sem ele nunca ninguém teria podido coleccionar amorosamente manuscritos, cartas, desenhos, notas de música, bilhetes. Como o faz desde há quase quarenta anos Pedro Corrêa do Lago sobre quem aqui escrevi há dias e a quem a Taschen homenageou com a deslumbrante edição de um livro, entretanto já publicado em Portugal, “A Magia do Manuscrito”.

São apenas dois exemplos e não sendo comparáveis, são ambos fulgurantes. O futuro se encarregará obviamente – e como não? — de os digitalizar. Ainda bem e que pena, as duas coisas. Ainda bem: tudo se salvará das catástrofes, das cinzas, dos roubos, do combate desigual com o tempo. E que pena: se se desistir de vez do papel de vez, se se desistir de o amar, se se perder a expectativa da chegada de uma carta, nada substituirá o seu cheiro; o abrir de um livro, o manusear das suas folhas, o sublinhar a lápis o que não suportamos vir a esquecer; o folhear jubiloso de um documento, a descoberta atenta de uma biblioteca, a silenciosa investigação que ela permite, o olhar maravilhado sobre uma obra rara – como a que evoquei de Corrêa do Lago. Pior ainda porém que do que ficar um dia privado “disto” é a incapacidade de deixar como herança o valor, o encantamento, a importância do que “isto” representa.

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3 Lêem-se livros nos écrans. Vejo muitas vezes nos aviões e comboios gente a ler livros assim e há tempos observei um pianista a tocar num recital, seguindo a pauta inscrita no écran do seu iPad.

E escreve-se no telemóvel. É rápido, cómodo e nefasto: desaprende-se. Não há escrita que resista a abreviações nem linguagem que sobreviva à sua redução a sinais e bonecos. É óptimo pagar contas, e dar recados com um telemóvel, não é evidentemente desses serviços mínimos que falo. Evoco o risco do verbo soçobrar no mar de verbos incompletos em que se navega informaticamente ou que as palavras e o seu bailado fiquem soterrados sob palavras apenas adivinhadas, ou partidas ao meio. Tudo isto que muito provavelmente soará ao leitor como um muro de lamentações é realisticamente temer que as vantagens desta formidável tecnologia aniquilem a possibilidade dos netos do país saberem ler e escrever em português. Vencerá o facilitismo, o menor esforço, a preguiça, fomentados pela agilidade da nova linguagem? É natural. Para não falar de quanto tal facilitismo aniquilará também o estudo, a exigência,o esforço. O desejo de saber, a vontade de ser o melhor. Para quê, se basta clicar no écran e “sai” a resposta? Más noticias.

4 O galope “do” hoje pode vir a ser assassino: será imprescindível viver-se assim? Tão dependente do viver “conectado “condição de tudo e para tudo? Respira-se pelo telemóvel. Na rua, no metro, nos empregos, nos restaurantes, nas igrejas, nas casa, na cidade. As vidas deixaram de ser privadas, a intimidade deixou de fazer sentido, vive-se na montra. Recebe-se, comunica-se, transmite-se. E autotransmitimo-nos aos “outros”, não se pode perder o lugar na grande montra dos Facebook e outras montras, os grandes palcos-moradas “do” hoje.

5 Segundos depois do concerto de Camané e Laginha, em Dezembro, no Coliseu, vendo a rendida admiração de um dos meus filhos que aplaudia tanto como eu, propus-me oferecer-lhe o disco alusivo ao concerto.

“Um disco?” como se eu lhe tivesse proposto ir para casa de carruagem puxada por quatro éguas, “mas já ninguém tem discos…”. Sub-entendido: já não “se” têm coisas. Há “tudo” na Net.

Assim seja. Mas não escondo algum (derisório?) desalento por saber ser já impossível transmitir – ou transferir — o prazer de olhar as estantes dos discos, andar por ali, escolher, comparar gravações, ouvi-las. Ou a dos livros. E ainda menos convencer alguém com menos de trinta anos de que o gesto de imprimir a fotografia de um rosto, um momento, um lugar, um instante fugaz de felicidade, e depois emoldurá-la perto de nós, tem um sabor e um valor irrepetíveis. Longe, tão longe, da lisa brancura fria do écran.

PS. A política mudou. Os distraídos pensarão que mudou à direita mas não, mudou para todos, esquerda e direita. É cedo, para avançar certezas ou sequer fazer apostas, não há fonte mais potenciadora e produtora de surpresa do que a política. Tudo corre bem/tudo corre mal, num ápice. Fique-se com o que é novo: o CDS não mudou só de líder, transfigurou-se, não resta pedra sobre pedra do que sempre houve, por diverso que tenha sido e foi; haverá duelo ou aliança — ou as duas coisas — entre os três recém chegados à direita do PSD: Iniciativa Liberal, Chega e CDS? (falo do CDS porque tem de ser tratado como coisa absolutamente nova); Rui Rio vai ter de agarrar numa bússola e escolher um qualquer ponto cardeal: qual? O céu do lado esquerda esta coberto de nuvens, vindas de inesperadas latitudes; António Costa foi surpreendido pelas frentes de batalha que se abriram diante de si e não tem jeito para isso; a triologia das esquerdas parece subitamente sediça. As presidenciais tornaram-se muito interessantes. O invísivel mas poderosíssimo ponteiro da política mexeu-se.