Rae Yang, uma professora universitária chinesa expatriada nos Estados Unidos, escreveu no seu livro de memórias dos tempos do maoismo, Spider Eaters, uma campanha assaz curiosa que lhe foi aplicada na Escola 101 de Pequim, frequentada pelos filhos da aristocracia partidária (que os comunistas levam a divisão de classes muito a sério). Às tantas, uns tempos antes do cúmulo da loucura que foi a Revolução Cultural, a dita escola implementou a campanha ‘Expor a terceira camada de pensamentos’. Os adolescentes da 101 deveriam confessar aos seus professores todos os pensamentos que tinham, sobretudo os mais fugazes, insidiosos e pecaminosos (contra a santíssima trindade do comunismo chinês – a boa da ideologia comunista, o partido e Mao Zedong – bem entendido, não contra a moral judaico-cristã).

Que bela expressão de totalitarismo, pensamos nós, não é? Uma escola presumir ser proprietária, ou mesmo depositária, desse último reduto da liberdade individual que são os pensamentos. Um sistema de ensino que pretende escancarar a intimidade dos alunos, não lhes permitindo sequer um espaço mental que não seja policiado e conhecido da coletividade.

Adivinharam. Conto esta pequena parte das memórias de Rae Yang porque me tenho recordado dela a propósito do questionário da escola Francisco Torrinha, no Porto, a miúdos de 9 anos, inquirindo se se sentiam atraídos por rapazes, raparigas ou ambos. Que alegria, toquem trombetas, estamos parecidos com o totalitarismo maoista.

Podemos imaginar a polémica e a indignação se um questionário destes fosse aplicado a alunos do ensino superior. Toda a gente consideraria, e bem, uma intromissão inaceitável na intimidade dos alunos, uma tentativa de forçar a obtenção de informação que faz parte da reserva mais pessoal de uma pessoa. Como é evidente, qualquer indivíduo é livre de dizer e demonstrar por que tipo de pessoas se sente atraído – e no caso de gays e lésbicas, sim, tal afirmação pública ainda ajuda à normalização e à aceitação social da homossexualidade – mas ninguém pode ser coagido a revelar que sexo prefere. Da mesma forma que não tem de revelar se se sente atraído por pessoas louras ou morenas, de que classe social, mais magras ou mais volumosas, com que tom de pele, propensas a atos kinky ou mais tradicionais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Destinado a crianças é ainda mais problemático. Não por revelar às criancinhas que se se pode sentir atraído por pessoas do mesmo sexo ou por ambos, atenção. Muitas críticas ao questionário vieram de quem não tolera a ideia de se discutir abertamente a homossexualidade e a pretende ainda remeter para as margens que a sociedade de bem não aceita – exceto se de boas famílias e tudo acontecer discretamente sem se aludir ao assunto. Uma espécie de ‘don´t ask, don’t tell’ social. Sou de opinião que sim, assuntos como os benefícios da paridade e da igualdade de género e a aceitação da diferença (seja racial, seja religiosa, seja de orientação sexual) devem ser abordados na educação de crianças e adolescentes a partir de uma idade razoável em que percebam estes conceitos.

Porém nada disto retira que o questionário seja um perfeito abuso de crianças. Desde logo porque não têm absolutamente nada que entrar nesta reserva de intimidade a que qualquer pessoa tem direito, mesmo se só tem nove anos. Mas o abuso vai mais além. Precisamente porque só têm nove anos, e provavelmente confiam nos adultos com autoridade que os rodeiam e não têm noção da intromissão que lhes estão a perpetrar, é um abuso da confiança que estas crianças oferecem com a normal ingenuidade infantil. O adulto abusivamente questiona e a criança confia e responde.

Acresce a tudo isto a absoluta imbecilidade de fazer tal pergunta a crianças daquela idade. A formulação é ridícula para crianças. O meu filho mais velho por esta idade sentia-se muito atraído pela Aelita, uma menina bonita de cabelo cor de rosa de uma série televisiva. O meu filho mais novo era bem capaz de responder que se sente atraído pelo Lego Ninjago ou pelo Sporting. Deposito grandes esperanças nas crianças do Porto para que tenham dado as respostas que os tontos dos adultos mereceram.

No entanto, é impossível não ficar saltitante de felicidade por ninguém numa escola ter reparado no desrespeito às crianças que era o questionário. Mas na verdade é só mais um passo distópico na forma como educamos os petizes. Têm uma carga horária de trabalho diária, entre aulas e trabalhos de casa, superior à de muitos adultos. Nós temos direito a descansar nas folgas, férias e fins de semana; as crianças não, têm sempre de ser sobrecarregadas de trabalhos de casa nos seus dias alegadamente livres e de descanso. É-lhes aplicada uma exigência por vezes a raiar o absurdo com que nenhum de nós, adultos, teve de viver. Os métodos de ensino são semelhantes há décadas, que mudar dá demasiado trabalho. As expetativas dos pais esmagam as crianças, obrigadas que estão a ser ótimos alunos – como se não tivéssemos sempre convivido com adultos tremendamente bem-sucedidos que foram alunos medianos. Os professores gostam de catalogar os casos difíceis com qualquer condição especial para que os resultados não lhe estraguem a avaliação.

No meio de tudo isto as crianças são joguetes políticos entre a exigência que a direita tanto ama e a inclusão que a esquerda prefere, ambos elevados a valores supremos e superiores às necessidades e à educação dos infantes. Será talvez de ir fazendo uma conta poupança para pagar as consultas dos psicólogos para tratarem da ansiedade quando esta geração for adulta.