A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas voltou a evidenciar as falhas teórico-argumentativas de que padecem muitas análises que se crêem ancoradas num progressismo mal compreendido. Presentes em formas mais ou menos sofisticadas, os seus defeitos tornam-se bem visíveis no esqueleto totalmente descarnado de um caso insigne, que foi o santo-e-senha do wokismo nestas eleições: afirma-se que os Estados Unidos da América não estão preparados para terem uma mulher negra como presidente.

Independentemente do conteúdo, a simples forma do argumento apresenta uma meta política como se se tratasse de uma finalidade objectivamente desejável, residindo neste «objectivamente» a desconsideração dos votos dos cidadãos mediante os quais definem as suas escolhas políticas, ou seja, aquilo que consideram desejável. Tudo se passa como se uma tal finalidade, ao possuir objectividade, existisse desde logo por si mesma. As escolhas eleitorais ficam de imediato sob suspeita de irracionalidade, porquanto os cidadãos que não votam no sentido objectivo, precisamente, não conseguem ou recusam-se a reconhecê-lo como um elemento objectivo do mundo, algo que se subtrai às suas escolhas ou preferências, como a lei da gravitação universal.

A partir desse ponto, para essa versão frustre do progressismo, sobra a educação, que dissolve o político no pedagógico, não passando por essa razão de uma forma de paternalismo benevolente, que atribui expressa ou tacitamente o estatuto de menoridade aos cidadãos que pensam de modo diferente e diverso. O habitual lamento quanto à manipulação e desinformação é apenas um caso particular da pedagogização do político. O que significa que tais cidadãos, os eleitores pouco educados da «América profunda», os redneck, etc., não são cidadãos de pleno direito em comparação com os seus educadores; claro que o conteúdo da educação é sub-repticiamente pressuposto e não discutido. A crítica é uma rua de sentido único: os não educados são de considerar educados quando, e apenas quando, se assimilarem aos seus educadores – tamanha modéstia é enternecedora.

Sobra também outra forma de despolitização, mais radical: o vasto espectro da criminalização das opiniões alheias, que são reduzidas a «discurso do ódio» ou equiparável – figura jurídica que nunca inclui o «basket of deplorables» de Hillary Clinton ou o «garbage» de Joe Biden. Para as opiniões desassombradamente não alinhadas, para os relapsos ou para os refractários à educação, recomenda-se o rigor da lei: os diferentes têm de ser normalizados, ficarão «preparados» de uma maneira ou de outra.

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A desclassificação dos adversários políticos implica igualmente a desclassificação própria. As finalidades políticas a alcançar pela acção colectiva de uma comunidade de iguais pressupõe que tais finalidades sejam produto do jogo das opiniões que se traduz, por fim, numa escolha a realizar. Ora, quando se atribui um valor objectivo a essas finalidades prescinde-se do próprio motor da acção política, que é acção recíproca das opiniões e convicções que se hão-de cristalizar numa decisão comum. A objectividade postulada constitui, por isso, uma forma de abstencionismo democrático, na medida em que os postulantes renunciam a persuadir politicamente o outro que é formalmente um igual. Pelo facto de uma decisão política não ser objectiva como um elemento existente por si no mundo abre-se a possibilidade de ser um objectivo a materializar, uma finalidade a alcançar, uma meta que dá sentido ao esforço. A objectividade atribuída à finalidade da acção política nega a igualdade dos cidadãos como sujeitos políticos e neutraliza as diferenças de opinião enquanto diferenças políticas. Uma consequência que deriva em linha recta da desconsideração do outro como cidadão de opiniões diferentes – a diferença real das opiniões desacredita a igualdade formal de ser um sujeito de opiniões; sem dificuldade reconhece-se aqui o velho modo de pensar marxista.

Um tal progressismo deita fora o bebé com a água do banho. O progressista interditou-se a si mesmo a acção em prol de um objectivo político que considera desejável, em pé de igualdade com os objectivos políticos de outros cidadãos; não há lugar subjectivo para compromissos. Como modo de acção, resta-lhe apenas a difamação das opiniões políticas diferentes, actividade em que excele, recorrendo a todos os meios, que ficam sempre aquém do que deseja. Dado que a aposta em jogo é a objectividade, toda a diferença é amalgamada numa só oposição, sem matizes, o que explica os disfemismos e as hipérboles – os apoiantes de Trump são, indistintamente, nazis, racistas, supremacistas, etc.

A contradição subjectiva que se esforçam por não ver, que não podem ver, está em que, se fosse verdade o que afirmam, se acreditassem no que dizem, os progressistas teriam de mudar de vida, a fim de honrar o elevado conceito moral-político que se atribuem. No entanto, conhecidos os resultados no dia seguinte, não passaram à clandestinidade; mudam as fraldas aos filhos, levam-nos à escola e vão à mercearia – talvez um teatro ao serão. A tudo isto soma-se o facto incómodo de se tratar de uma reeleição. Os eleitores não escolheram perdidos numa floresta de enganos. Escolheram o que já tiveram e compararam-no com o que se lhe seguiu.  Se houve voto em consciência, foi este.

Para além da forma, também o conteúdo do argumento opera uma despolitização dos adversários, porventura mais radical e mais perversa. Lançando mão do habitual jogo duplo, o progressismo apresenta a «primeira mulher negra» dando ao termo duas acepções. Por um lado, numa acepção destituída de conteúdo político e como tal reduzida a um caso particular da universalidade humana, em que não estar «preparado» para ter uma mulher negra como presidente  é uma falta de preparação que atinge o coração da humanidade: é a recusa racista e misógina do outro. Assim sendo, o juízo provém de um ponto de vista universal-moral e não político, servindo desse modo para despolitizar a decisão política substituindo-a por uma posição moral de virtude individual – não vale a pensa sequer lembrar que nada disso entra em jogo quando se trata de nomes como Condoleezza Rice ou, muito recentemente, de Kemi Badenoch. Mas, além dessa chantagem moral que privatiza o cidadão, ao apresentar a «primeira mulher negra» como definidora da América, o progressismo unilateraliza negativamente o cidadão. Deixa de estar em causa uma escolha política positiva, cujo âmbito constitui o leque mais ou menos vasto de problemas com que cada eleitor se confronta e relativamente ao qual toma uma posição. A moralização prévia da escolha leva a cabo insidiosamente uma diferenciação hierárquica de valores em que precisamente se opera uma nova despolitização. Ao não escolher a «primeira mulher negra», um valor moral absolutizado, por ser definidor da «América», mediante a sua total desideologização, o cidadão eleitor afirma a sua imoralidade radical que fundamenta a sua descriminação moral. A concepção progressista entende, assim, que o eleitor pautou exclusivamente a sua decisão por um elemento negativo essencial : é contra aquele valor moral, a sua recusa prima sobre todos os outros conteúdos políticos positivos (propostas, programas, etc.). Desse modo, atribui-se à sorrelfa um conteúdo político invertido à «primeira mulher negra»: serve para anular a escolha especificamente política dos eleitores, acantonando-os uma vez mais na moralidade individual. Mas isso também só é possível por mais uma desconsideração do outro. Dado que pretende fazer um diagnóstico quanto à falta de «preparação» de um ponto de vista superior, sem considerar a opinião alheia em pé de igualdade – o facto que lhe permite desvalorizar a capacidade decisória do eleitor –, o progressismo tem de conhecer em absoluto o que o outro pensa, um conhecimento por iniciativa própria e que é independente da interpelação do outro, cuja voz é silenciada sem escrúpulos. Nesse modo de pensar ensimesmado, na bolha woke, os outros não existem. Por isso, o homem comum que não cedeu à chantagem pseudo-moral da vanguarda e da sua objectividade vê-se difamado: é mau, moralmente mau, é o mal radical. Não espanta que o quisessem tratar como lixo.