O Brasil republicano tem uma longa história de golpes militares, a começar com o que instaurou o novo regime, em Novembro de 1889. Os eventos desta semana são, no entanto, bastante peculiares. As forças de segurança da capital podem ser suspeitas de omissão ou ineficácia, mas foram bandos de civis a tomar os centros do poder político em Brasília, criando o caos em nome da ordem. Deixei claro que era um erro subestimar os riscos presentes para a democracia brasileira, apenas porque não havia sinal de militares desejosos de tomar o poder pela força. Agora ficou bem claro que o risco é real.

Golpismo e vandalismo político

Muito coisa pode ainda ser desconhecida ou precisar de ser comprovada. Por exemplo, quem organizou e financiou estes grupos, e se houve cumplicidade ou displicência das forças de segurança na capital brasileira. Mas, mesmo sem uma liderança e sem um programa claros, as intenções destes vândalos políticos ficaram bem evidentes. Só aceitam decisões judiciais convenientes e eleições que vencem. Quando não é assim, estão dispostos a destruir edifícios e património de todos, estão dispostos a destruir até a democracia brasileira.

As culpas dum processo perigoso de radicalização e polarização da política brasileira nos últimos anos não são exclusivas da direita radical bolsonarista. O PT e os seus aliados não fizeram um mea culpa pelo Petrolão. O afastamento de Dilma Roussef é criticável, mas foi livremente votado nos termos legais pelo Congresso, e não se enquadra, por isso, em qualquer definição válida de golpe. Muitas opções da presidência de Bolsonaro são críticáveis, mas é excessivo falar de genocídio ou de ditadura. Não são aceitáveis, no entanto, falsas equivalências. O PT e os seus aliados cometerem erros, mas não recorreram à força para resistir a decisões judiciais ou para anular os resultados de eleições.

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Também é verdade que os brasileiros têm tido muitas razões de queixa, e quantas mais tiverem mais fácil será a sua mobilização para movimentos radicais. Podem queixar-se de corrupção, de um Estado ineficiente, de injustiças, discriminações e desigualdades, inclusive algumas herdadas do período colonial português. Mas é importante recordar que nenhum destes problemas foi resolvido por sucessivos golpes e intervenções militares em anos sucessivos no último século: 1930, 1937, 1945, 1954, 1955, 1961, 1964, 1969. É fácil perceber porquê. Soluções de força são inevitavelmente transitórias, duram enquanto durar o medo e a repressão. Um poder autoritário por definição escapa ao escrutínio livre, é, por isso, ideal para encobrir, com censura e repressão, todo o tipo de abusos. Não duvido que muitos brasileiros queiram mudar muita coisa no Brasil, mas a solução é mais democracia e melhor governo, não uma nova aventura ditatorial!

Como vencer o golpismo

As Forças Armadas também têm uma responsabilidade particular como garantes últimos da ordem constitucional que juraram defender. Devem honrar esse compromisso, para bem da sua credibilidade e do país. Tenho tido a oportunidade de trabalhar com oficiais brasileiros, sei que são altamente preparados, muitos com estudos avançados, e a sua competência é justamente reconhecida. Embarcar por ação ou omissão numa aventura golpista seria abrir uma terrível caixa de pandora. Umas Forças Armadas golpistas são por definição indisciplinadas, politizadas, desviadas da sua missão primordial de defesa da segurança nacional por intrigas políticas. E ficarão com a mancha da repressão de que as elites golpistas civis sempre se distanciam. Quero crer que neste momento esta é uma hipótese meramente teórica, mas é fundamental que comandos militares e elites civis se empenham em que continue a ser assim.

As elites civis brasileiras têm também uma enorme responsabilidade neste momento histórico. Se há uma coisa que o estudo dos golpes nos mostra é que o sucesso na tomada do poder pela força nunca resulta dum mero capricho de militares, que subitamente se lembram de tomar conta do Estado. Só existe golpismo bem-sucedido quando um sistema político se descredibiliza, entra em impasse, e quando partes importantes das elites civis começam aberta ou encobertamente a apoiar um golpe. Muitas vezes essas elites convencem-se que conseguirão controlar o golpismo, raramente esse pacto faustiano lhes corre como previsto. Um bom exemplo disso é o governador carioca, Carlos Lacerda, um forte apoiante do golpe de 1964, que acabou cassado pelo regime militar. A direita moderada – parlamentares e governadores – tem aqui uma especial responsabilidade de resgatar a respeitabilidade de setores importantes do país. O PT, o Presidente Lula e o seu governo também devem mostrar que merecem o apoio de uma frente mais ampla do que a da sua militância. Isso não será fácil para nenhum dos lados, mas parece indispensável para cortar pela raiz este vandalismo político e evitar o triunfo duma política de terra queimada que, depois de incendiar a Amazónia, ameaça carbonizar a democracia brasileira.

Estas são, acima de tudo, questões para os brasileiros. Sem o apoio permanente duma ampla maioria nenhum sistema democrático pluralista sobrevive. Mas o trajeto político futuro do Brasil não é uma questão a que possa ficar indiferente quem goste desse país ou da liberdade. Independente disso, o Brasil é demasiado importante para o resto do Mundo poder ignorar a possibilidade duma crise prolongada e violenta. Isso ficou bem evidente na condenação praticamente universal, de Pequim a Washington, deste assalto a Brasília.