Em todos os romances policiais há, por regra, um homicídio. A descoberta do assassino é a razão da história. Mas nem a meticulosa ordem de Hércule Poirot, nem a simpática bisbilhotice da Miss Jane Marple, nem a perspicácia do intuitivo Padre Brown, nem sequer o método científico de Sherlock Holmes, ou mesmo a autoridade do comissário Jules Maigret, lograram resolver um caso ocorrido há mais de dois mil anos.
A morte de Jesus Cristo (JC), tal como está descrita nos quatro Evangelhos canónicos – os únicos a que a Igreja reconhece credibilidade histórica e inspiração sobrenatural – é, com efeito, um caso policial. Depois de aclamado em Jerusalém, por ocasião da páscoa judaica, foi traído por um dos seus, condenado por blasfémia pelo Sinédrio judaico e crucificado por ordem do governador romano, Pôncio Pilatos. Ante o mistério desta incompreensível morte, juntaram-se os melhores detectives de todos os tempos, aos quais foi proposta a questão: afinal, quem matou Jesus de Nazaré?
Miss Marple foi a primeira a falar:
– Tendo em conta as declarações prestadas pelos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João, a culpa é de Pôncio Pilatos e, em geral, dos romanos, pois foi num território sob o domínio de César que a sentença foi proferida e executada.
Não faltava razão à Miss Marple, mas Sherlock Holmes acrescentou:
– Miss Jane Marple identificou o responsável oficial pela morte de Cristo, mas ficou claro que o governador romano não agiu por sua iniciativa, mas contra a sua vontade, pois tudo tentou para que JC fosse solto e até quis que beneficiasse do indulto pascal. Portanto, deve-se atribuir ao Sinédrio a responsabilidade pela sua morte, bem como ao povo judeu que, em vez de amnistiar Cristo, preferiu Barrabás.
Hércule Poirot já tinha mostrado alguma impaciência, porque os copos de água não estavam perfeitamente alinhados na correspondente bandeja, o que lhe pareceu uma insuportável falta de ordem e de método, que comprometia o bom desempenho das suas células cinzentas. Quando chegou a sua vez, o famoso detective belga sugeriu uma surpreendente solução para o caso:
– Em termos legais, JC foi vítima dos romanos, sobretudo de Pôncio Pilatos, embora instigado pelo Sinédrio e por alguns judeus. Mas a ocasião para a realização do crime não foi da responsabilidade dos romanos, nem dos judeus, mas dos cristãos.
Foi tal a admiração dos presentes que Poirot, depois de cofiar o bigode, teve de se explicar:
– Com efeito, foi um dos doze apóstolos, Judas Iscariotes, quem entregou JC, por um preço previamente acordado. O seu beijo, no horto das oliveiras, foi – voilá! – o sinal da traição: se ele o não tivesse traído, muito provavelmente o Sinédrio não o teria condenado, nem os romanos o teriam executado. Faço notar – disse ainda o detective belga – que os discípulos do Nazareno nunca perdoaram ao Iscariotes a sua traição: foi logo banido do grupo dos doze, onde foi substituído por Matias, e é o único dos apóstolos que não foi canonizado pela Igreja, embora Pedro, que por três vezes negou o Mestre, o tenha sido.
Foi então que o comissário Jules Maigret, com a enfatuada importância de quem é, ao contrário dos restantes detectives, uma autoridade policial, deu a conhecer o relatório oficial da polícia sobre o misterioso caso do assassinato de JC:
– Jesus de Nazaré encontrou-se com os seus discípulos, horas antes de ser detido, para depois ser julgado, torturado, condenado à pena capital e morto. Das declarações unânimes das testemunhas da sua última ceia e não só, decorrem duas conclusões surpreendentes. A primeira é que, embora não se tenha obviamente suicidado, ele disse: “Se o Pai me ama, é porque dou a minha vida para outra vez a assumir. Ninguém ma tira, mas eu por mim mesmo a dou, porque tenho poder de a dar, e tenho poder de a reassumir, porque este é o mandamento que recebi do meu Pai” (Jo 10, 17-18). Por outro lado, o apóstolo que ele escolheu para pôr à frente da sua Igreja declarou que JC “não cometeu pecado algum e na sua boca não se encontrou mentira” (1Pd 2, 22). Sendo ele inocente, de quem foi então a culpa? Um tal Isaías disse-o, perentoriamente: “foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades” (Is 53, 5).
O Padre Brown, sentado a um canto, passava pelas mãos calejadas as contas do terço, enquanto ouvia o que os sábios diziam. Ao ouvir o comissário Maigret, lembrou-se do fariseu que, de pé, no templo, se ufanava de não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como o publicano que, a seu lado, batia no peito, dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!” Percebeu então que, se atribuísse a outros a culpa pela morte de Cristo, seria tão fariseu como o outro fariseu, quando só o publicano “voltou justificado para sua casa” (Lc 18, 11-14).
Foi então que, lívido, se levantou e, pretextando um inadiável compromisso pastoral, se despediu e saiu cabisbaixo. Enquanto os outros detectives discutiam o caso, o Padre Brown balbuciou, num sussurro quase imperceptível:
– Fui eu …
Já na rua, o Padre Brown “chorou amargamente”, como outrora Pedro, depois de ter negado, por três vezes, o Mestre (Mt 26, 69-75). Neste caso policial, a verdade é a mais pungente das revelações: todos nós, pecadores, somos os verdadeiros culpados pela morte de Cristo na Cruz e, a única forma de nos redimirmos do deicídio que cometemos, é amando a Deus no nosso próximo.
As lágrimas do Padre Brown foram, primeiro, de arrependimento, mas depois de enorme alegria porque, como dizia, “a vida com que vivo agora na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20). Como disse Chesterton, “o louvor devia ser o permanente pulsar da alma”, porque a alegria, que é a grande novidade cristã, “é a tumultuosa actividade em que todas as coisas vivem.”