Passos Coelho decidiu apresentar um livro e a Lisboa mediática e política no hemisfério esquerdo entrou em sobressalto. Pedro Nuno Santos vê Passos Coelho na “direita radical”, o Bloco e o Livre anunciaram que Passos Coelho aderiu ao Chega. Os cronistas de esquerda, em geral, colocaram Passos Coelho na “na direita mais conservadora e arcaica”, nas palavras de um deles. Alguns até disseram, mantendo um ar sério (o hábito da mentira tem consequências), que em Portugal a ideologia “woke” não existe.

Há dois planos na discussão e na intervenção de Passos Coelho. Um deles é a substância sobre questões fracturantes como o aborto, a eutanásia, o casamento entre homossexuais, a adopção de crianças por casais homossexuais, a emancipação das mulheres, e o radicalismo que se seguiu com o movimento LGBT. Não li o livro que Passos Coelho apresentou, mas pela descrição e pelos autores, o livro apresenta uma posição conservadora sobre estes temas. Mas vi a apresentação de Passos Coelho e, obviamente, não defendeu todas as posições do livro. Quem conhece o percurso e o pensamento político de Passos Coelho sabe que diverge de algumas posições defendidas no livro.

Isso mostra que entre as direitas há pluralismo de pensamento em relação a questões fracturantes. Muitos concordam com o casamento entre homossexuais e com a adopção por esses casais, mas são contra o aborto e contra a eutanásia. Alguns aceitam o aborto em circunstâncias excepcionais, e continuam a opor-se à eutanásia. Toda a gente de direita (e conheço muitos) é obviamente a favor da igualdade de géneros, mas alguns são contra as políticas de quotas.  Também são todos contra a discriminação dirigida contra os homossexuais, mas não aceitam que daí se passe para o radicalismo da ideologia de género. Ou seja, há uma riqueza plural no pensamento das direitas. Mas, por outro lado, ninguém pode esperar que a direita não seja mais conservadora do que a esquerda nestas questões.

Mas há um segundo plano nesta discussão, o direito à diferença, à dissidência, a liberdade de pensamento. Foi neste plano que a intervenção de Passos Coelho foi marcante. O antigo PM disse aos portugueses que apesar de não concordar com todos os textos do livro, considera que os autores têm a liberdade de exprimir essas opiniões, sem serem desqualificados e mesmo diabolizados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A posição de Passos Coelho tem naturalmente um elevado significado politico porque há muita gente de direita, que tem posições conservadoras sobre o aborto, sobre a eutanásia, sobre o casamento de homossexuais, sobre a adopção de crianças por esses casais, e sente que as suas posições são consideradas radicais e extremistas. Uma pessoa pode ser contra o aborto e a eutanásia e ao mesmo tempo, absolutamente, moderada em termos políticos, até pode votar em partidos de esquerda. Estão os conservadores nos costumes condenados a votar no Chega? Seria completamente absurdo. É muito bom que essas pessoas vejam um antigo PM e líder do maior partido de centro de direita a defender o direito dessas opiniões aparecerem na discussão pública, sem as diminuir e ofender.

As esquerdas, em geral (não quero generalizar, mas só vi uma pessoa de esquerda defender Passos Coelho, foi Francisco Assis; se houve outros fico muito contente), partem de um pressuposto falso que explica a sua intolerância. Colocam as questões fracturantes no contexto da oposição entre progresso e “reacionarismo.” Daqui é apenas um pequeno salto para transformar a discussão entre o bem, o progresso, e o mal, os reacionários. Mais, a história só tem um caminho: o “progresso.” Por isso, será uma questão de tempo até todos aderirem ao progresso, e abandonarem o “arcaísmo.” Obviamente, o tempo muitas vezes é demasiado lento, por isso é necessário acelerar a história, “convertendo” os que resistem ao “progresso”, por vezes com a coerção e a chantagem moral e mental adequadas. A história do século XX está cheia de exemplos onde o caminho para o progresso permitiu todo o tipo de violência mental, moral e até física. Os donos da “verdade” sempre quiseram educar aqueles que continuam perdidos no passado “arcaico.”

Veja-se o que se passou com o aborto, ou com a discussão sobre um novo referendo. Após perderem o primeiro referendo, as esquerdas não descansaram enquanto não realizaram um segundo referendo. O “progresso” exigia que se desse uma segunda oportunidade a quem tinha votado de um modo “errado”. Depois da maioria ter colocado a cruz na escolha “certa”, já não se pode realizar novos referendos. Afinal de conta, já chegámos ao “progresso”? E quem ousar defender outro referendo, ou seja perguntar aos portugueses o que pensam sobre a questão, é logo tratado como reacionário. Eis, uma estranha concepção de democracia: quando a nossa posição ganha, não se volta a perguntar ao povo.

Não haverá um novo referendo, mas quem é contra o aborto, contra a eutanásia, contra o casamento entre homossexuais, deve ter o direito de exprimir essas posições sem ser desqualificado ou tratado como um extremista. Essa liberdade é central para a saúde de uma democracia pluralista. Foi essa liberdade que Passos Coelho defendeu. Diz muito sobre a política em Portugal que 50 anos depois do 25 de Abril, um dos líderes das direitas mais atacado pelas esquerdas, tenha feito uma grande defesa da liberdade. Mesmo fora da política activa, Passos Coelho continua a prestar um grande serviço à qualidade da nossa democracia. Não há democracia sem liberdade. A defesa da liberdade exige que se defenda o direito de quem tenha opiniões contrárias à nossa a exprimi-las. Defender a liberdade de quem pensa como nós é demasiado fácil.