Há coisas que nunca deveriam acontecer, mas acontecem. A repetição das eleições no círculo da Europa, tem consequências simbólicas, pessoais, políticas e financeiras. A democracia portuguesa sofreu um revés na sua imagem. Interna ou externamente só podemos ser vistos como um país que falhou num ato tão simples e importante como uma eleição. Cada um dos nossos 195.701 emigrantes do círculo da Europa que solidariamente participou neste ato coletivo democrático num importante momento identitário da sua cidadania, através do ato de votar, sofreu uma desilusão. O seu voto foi pura e simplesmente desperdiçado, não serve para nada. Agora, os que ainda forem votar, sabem que o resultado do jogo democrático está já no essencial decidido. Tantas vezes esquecidos e longe do seu país natal ficam novamente para último lugar. O país ficou politicamente adiado, com governo de gestão e sem escrutínio da Assembleia da República. Last but not least esta repetição das eleições tem custos, para além de pessoais, financeiros. Errar é humano, mas voltar a não aprender com os erros, já verificados em 2019, e não atribuir responsabilidades, aumenta a probabilidade que se venham a repetir exactamente com a mesma autoria quer neste caso quer noutros domínios.
Assumindo como válidos os factos aqui descritos no Observador, e lendo o Acórdão do Constitucional, parece-me que há, cronologicamente dois responsáveis. Em primeiro lugar, quem devia zelar por todo este processo: a Comissão Nacional de Eleições (CNE). Logo nas eleições de 2019 a CNE indicava numa deliberação de 15/10/19 que a apresentação do cartão de cidadão seria dispensável (ver pg. 2 do Acórdão). Agora, antes ainda das eleições terá emitido uma informação que num ponto reproduzia a lei – a necessidade de fazer acompanhar o voto com a cópia do cartão de cidadão – e logo no ponto seguinte dizia que “Em caso de incumprimento, a competência para deliberar cabe, em exclusivo, às mesas” (citado aqui). Por outras palavras, há o que vem na lei, mas se não se cumprir a lei fica à discricionariedade de cada mesa decidir. É óbvio que decidiriam de forma diferente logo houve tratamento diferenciado dos cidadãos eleitores e clara violação da justiça e da lei eleitoral.
O segundo grande responsável deste imbróglio são os partidos, em particular os que estiveram na reunião do já célebre “acordo de cavalheiros” em que deliberaram aceitar os votos, mesmo sem cartão de cidadão, desde que seja clara a identificação do eleitor. Ou seja aceitaram uma violação expressa da lei, é certo com o respaldo de interpretações anteriores da CNE. Os partidos que nele participaram (IL, PSD, Aliança, BE, Livre, Volt, CDU e PS) aceitaram que o “espírito da lei” era contrário à norma da lei escrita, algo muito sui generis (o PSD depois alterou a sua posição). Obviamente o Tribunal Constitucional fez o que tinha a fazer, declarar a nulidade das eleições no círculo da Europa. Acresce ainda à responsabilidade dos partidos, o facto do problema estar identificado, desde pelo menos 2019 e de apesar de terem o exclusivo poder de alterar essa mesma lei, não o terem feito.
Há, porém, uma outra importante ilação deste episódio para o futuro funcionamento da Assembleia da República, que importa realçar. Quem por lá passou sabe que, por vezes, apesar das normas do regimento dizerem uma coisa, quando todos os partidos estão de acordo faz-se de modo diverso. Isto pode valer para pequenas coisas em que os direitos de terceiros não são infligidos. Neste caso existe o que nós economistas chamamos de ganhos de eficiência à Pareto (todos ficam melhor e ninguém fica pior). Esta lógica de “acordo de cavalheiros” na AR tem assim três dimensões: consenso, universalidade e particularismo (nenhum dos quais verificado nestas eleições). Estes acordos têm uma importante consequência. Quando há uma situação semelhante no futuro avalia-se de acordo com a “tradição” ou com o “precedente”.
Se é certo que estes acordos em pequenas questões são sempre necessários eles representam um risco acrescido nesta legislatura que terá duas dinâmicas distintas. Por um lado uma maioria absoluta do PS dará maior previsibilidade às decisões políticas que exijam, para serem aprovadas, apenas maioria simples ou absoluta. Por outro, a existência de um partido que se diz anti-sistema, e de outro que se quer afirmar faz com que se preveja a utilização de todos os instrumentos parlamentares para ocupar espaço e eventualmente criar incidentes parlamentares que só desprestigiam o parlamento, embora dêem visibilidade a qualquer dos partidos. O maior risco desta nova legislatura é ver-se envolvida em casos e casinhos regimentais. O meu conselho é que revejam já o Regimento da Assembleia da República (RAR) da forma mais consensual possível de modo a que seja realista e eficaz e esteja conforme à Constituição. Conforme tive ocasião de explicar (*), o regimento tem muito mais debates do que a CRP prevê. Onde a Constituição estabelece um tipo de debates sobre “questões de interesse público atual e urgente”, o RAR criou dois: “debates de atualidade” e “debates de urgência”. Ainda inventou um novo, não previsto na Constituição: debates temáticos. Como o tempo dos deputados é escasso, mais debates destes é menos tempo para a produção e deliberação legislativa e menos fiscalização parlamentar, o que é indesejável. Se a AR tiver um RAR adaptado à realidade parlamentar reduz-se, como deve ser, a necessidade de quase todo o tipo de “acordos de cavalheiros”.
De uma coisa podemos estar certos. Nem todos são cavalheiros e damas na Assembleia da República, e as regras regimentais existem para ser cumpridas. Quanto mais existirem regras impraticáveis ou omissões no regimento, mais ambas serão exploradas para a litigância mediática em benefício de alguns partidos e em detrimento da democracia.
* Ver P. Pereira (2020) “Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio?” pg 89-90.