O exemplo mais preocupante que nos foi oferecido nos últimos dias é protagonizado pelo ministro da Educação. Diz João Costa que o “ranking” das escolas é uma “operação comercial” uma vez que os resultados estão ligados ao quadro sócio-económico e dando o exemplo do último lugar ocupado pela Baixa da Banheira, sítio onde 70% dos alunos estão abrangidos pela Ação Social Escolar.

João Costa podia ter tido duas abordagens ao ‘ranking’. Uma opção seria a abordagem construtiva de olhar para os dados e dizer que iam estudá-los e definir objetivos para fazer com que as escolas públicas melhorassem a sua classificação. Escolher, por exemplo, a escola da Baixa da Banheira e definir um objetivo e um conjunto de medidas para que no próximo ano abandonasse o último lugar.

Mas optou pela abordagem conformista e destrutiva, desvalorizando a classificação, ignorando os resultados e, pior ainda, o retrato que esses dados nos dão sobre a escola pública e o agravamento da desigualdade de oportunidades. Aceitou como um dado, sem possibilidade de ser mudado, o facto de uma escola com muitos alunos desfavorecidos estar em último lugar, sem se aperceber que estava a considerar um fracasso as políticas sociais de integração e, mais grave ainda, a aceitar que nunca poderiam mudar nada. O que João Costa nos diz é que o elevador social chamado escola pública está avariado e as políticas públicas nada podem fazer por ele.

A escola pública, onde a esmagadora maioria das gerações anteriores andaram, era um poderosíssimo elevador social e um importante factor de inclusão da diversidade. Contribuía para, através das crianças e dos jovens, cruzar mundos económicos, sociais e culturais que, de outra forma, seguem caminho paralelos. Participava para que todos conhecessem mais mundos, em vez de ficarem fechados na sua bolha socioeconómica. E pela partilha do mundo dos outros, contribuía para que se compreendesse e aceitasse a diferença, em vez de, como hoje acontece, ter medo dela e assim de aprisionar em radicalismos.

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Ao rejeitar a realidade, o ministro da Educação, muito provavelmente sem se dar conta, está a condenar-nos ao agravamento das desigualdades e ao radicalismo. Os que têm dinheiro, mesmo com sacrifício, colocam os filhos na bolha protegida das escolas privadas, onde pouco ou nada conhecem de outros mundos que não o seu, acabando por ter uma visão distorcida da realidade. Visão esta que lhes vai criar dificuldades na compreensão de pessoas diferentes social e culturalmente e os vai colocar perante o risco do conservadorismo e radicalismo. É esse o país que João Costa quer em Portugal?

A hipocrisia dos discursos de apoio à escola pública é agoniante. Quando descascamos a vida de quem faz essas juras, auto-classificando-se como de esquerda, descobrimos que os filhos estão em escolas privadas, mesmo quando têm uma boa escola pública perto de casa. Os governos, sucessivos, destruíram a escola pública como destruíram a saúde pública. E quanto mais ouvimos discursos de juras de amor ao ensino público, mais devemos desconfiar. Nestes últimos anos pouco ou nada se fez para melhorar a qualidade do ensino, a vida dos professores e as perspetivas dos alunos mais desfavorecidos. Fernando Alexandre, no artigo “Os rankings que estragam o sono ao Sr. Ministro”, dá uma realista perspetiva deste tema.

Essas crianças e jovens das escolas privadas são depois aquelas que em geral conseguem entrar nas universidades públicas, ficando as privadas para os que, lutando contra aquilo a que o país as condenou, sacrificam-se muitas vezes a trabalhar para pagarem o ensino superior.

Mas aquilo que o Governo quer é repetir à exaustão que “temos a geração mais qualificada de sempre” – uma estranha frase, já que em princípio, a nova geração é em regra mais qualificada do que a anterior. Não se preocupa em olhar para a educação que as crianças e os jovens vão precisar no futuro, numa era em que a inteligência artificial coloca desafios enormes. Nem se preocupa em saber de onde vem e para onde vai essa geração e como está a ser paga.

No Estado da Nação de 2023 elaborado pela Fundação José Neves conclui-se, entre outras cosias, que “enquanto em 2011 um jovem adulto com um curso superior tinha, em média, um salário 50% superior ao de um com o ensino secundário, essa diferença diminuiu para 27% em 2022.” Olhando para esta redução da diferença podíamos cair na tentação de dizer que estamos no caminho certo, de redução da desigualdade salarial. O problema é que essa diferença diminuiu fundamentalmente por redução do salário dos qualificados e não por aumento dos que têm até ao ensino secundário.

Temos ainda a emigração que não estancou e assumiu novas formas com o trabalho remoto que se generalizou após a pandemia. Corremos o risco muito sério de ter uma economia com um perfil mais desqualificado, enquanto os jovens qualificados emigram e a imigração mais significativa é de pouco qualificados, por causa do peso do turismo.

Mas tudo isto é um lado da realidade, que nos está a desenhar o futuro, que o Governo teima em ignorar não apenas no discurso, mas também na acção. Aceita-se o que vai sendo dado pela conjuntura, as realidades que desagradam são classificadas das mais variadas formas – a mais nova é os dados serem “comerciais”- e os números são torturados até darem o que queremos ver. O caso mais massificado é o da convergência para a média da União Europeia, desprezando o facto de esse resultado refletir apenas o baixo crescimento dos Estados mais ricos e ignorando a realidade de estarmos a ser ultrapassados pelos países do chamado Alargamento.

O primeiro passo para resolver um problema é sempre reconhecer que ele existe. Mas o Governo vive num mundo cor-de-rosa e não quer sequer ouvir quem o alerta para os problemas que se vão acumulando. Tal como aceitou degradar os serviços públicos na estratégia que escolheu para reduzir o desequilíbrio orçamental, sem se preocupar com o que estava a fazer ao Estado, também agora despreza os alertas sobre a economia e a sociedade que estamos a construir na escola. A realidade, esse é o problema, acaba por se afirmar.