Julgo que pertence a Herman José a expressão de que “a vida dos pobrezinhos é um mistério”. Às vezes penso que para muitos dos nossos governantes e altos funcionários, habituados a muitos anos de motorista e ordenança, a vida dos cidadãos comuns também deve ser um mistério. E um mistério insondável.

Não encontro mesmo outra explicação para a informação que a secretária de Estado da Justiça enviou ao Parlamento dando conta que os atrasos no atendimento para quem deseja tratar do Cartão do Cidadão se deviam ao facto de os utentes das lojas do cidadão terem o mau hábito de, “sistematicamente”, irem para a porta dos serviços “antes da abertura do atendimento ao público”. Bem sei que o Ministério depois fez mea culpa, mas como este não é o primeiro passo em falso de Anabela Pedroso – recordo-me que também anunciou, e depois desmentiu, que os cartões de cidadão iam deixar de indicar o sexo dos seus titulares (ou o “género”, para ser politicamente correcto), e que informou que ia ser possível ter o cartão do cidadão em cinco minutos, omitindo que isso só acontecia depois de esperar horas –, fico com a convicção de que, para alguns governantes, tudo o que sai dos seus esquemas mentais não existe, mesmo quando os seus esquemas mentais são pura ficção.

Dir-se-á: é uma excepção, foi uma gaffe, uma andorinha não faz a Primavera. Poderia concordar se não existisse um padrão – e esse padrão é quase sempre o de começar por negar a realidade. Quantos meses foram necessários para que se admitisse – e com relutância – que as cativações criam graves problemas de funcionamento nos serviços públicos? Quantas dezenas de reportagens tiveram de ser escritas ou passarem nas televisões para finalmente se admitir que havia problemas com o Cartão do Cidadão, os serviços do IMT, os inacreditáveis atrasos da Segurança Social? Quantos comboios foram suprimidos, cadeiras arrancadas, quantos motores tiveram de cair de andamento antes de se admitir que havia mesmo um problema de investimento nos transportes públicos e um ministro ser obrigado a pedir desculpa? Quantas notícias foram publicadas sobre a falta de médicos ou a situação de ruptura em serviços de urgência de hospitais do SNS até os ministérios da Saúde e das Finanças desbloquearem alguns (poucos) concursos para admissão de mais profissionais?

Vou ser cínico: todas essas vezes, todas essas notícias, todas essas vozes seriam insuficientes se não estivéssemos a poucos meses das eleições. O registo continuaria a ser apenas aquele que vimos a Mário Centeno esta semana na TVI, em que nunca admitiu que houvesse qualquer insuficiência, em que apenas fez algo em que é hábil: torturar os números para eles chegarem à conclusão pretendida. Ou seja, que “o Serviço Nacional de Saúde é melhor hoje do que em 2015”, algo que a experiência quotidiana dos cidadãos comuns não confirma. Porém, quem são os cidadãos comuns? Que sabem eles de números e de estatísticas?

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A ignorância dos cidadãos comuns, tal como a sua vida, é um mistério. Porque é que vão para as filas de madrugada? Porque é que acreditaram todos que, sendo os passes mais baratos, haveria transportes para todos? Porque é que estranham esperar quase às vezes quase um ano para receberem a sua pensão depois de se reformarem? No fundo, porque é que não são pacientes? Afinal isto até está a correr tão bem…

É então que entra a fábula. A fábula do sucesso português e do milagre da geringonça. Que reza mais ou menos assim: com a devolução de rendimentos relançámos a economia, com o relançamento da economia estamos a crescer mais do que a zona euro, com o rigor da gestão orçamental fizemos isto tudo com “contas certas”. Se não é o melhor dos mundos, estamos lá perto.

Este é o espelho a que esta maioria quer que nos vejamos. É nele que ela se revê. Tudo o que sai do reflexo idílico deste conto de fadas “espelho meu, espelho meu, há primeiro-ministro mais belo do eu” é imediatamente apresentado como uma “não realidade”. A única realidade possível é a da fábula oficial.

Mas será mesmo?

A semana passada, entre feriados, tropecei na notícia impossível. Cito o título: “Portugal ficou mais pobre face à Europa em 2018”. Esfreguei os olhos, li, reli, fui à fonte, o Eurostat, e não havia dúvida: em 2018 o PIB per capita medido em paridades de poder de compra caiu em Portugal de 77% para 76% da média da União Europeia. O que significou que fomos ultrapassados por mais um país, a Eslováquia. O que representou a primeira queda desde 2012. Temos agora 20 países à nossa frente na comparação da riqueza relativa, por habitante. Voltámos a perder terreno e voltámos a perder um lugar. Desde 2015 já perdemos três lugares.

Para não ser acusado de torturar os números, acrescentarei que esta é apenas a primeira estimativa do Eurostat. E que no indicador de consumo privado mantivemos a mesma posição relativa. Mas mesmo fazendo estas duas considerações, a verdade é que começo a estragar a imagem perfeita do espelho – daquele espelho onde o Governo só quer ver reflectida uma imagem idílica, aquele espelho onde nos dizem que nós, os portugueses, “os melhores do mundo”, só podemos sair bem na fotografia.

Afinal de contas não foi também a semana passada – de resto, exactamente no mesmo dia, vejam lá a coincidência – que ficámos a saber que o número de desempregados inscritos no IEFP está agora no valor mais baixo dos últimos 28 anos? Pois foi. Também vi essa notícia. Essa boa notícia. Só que… há sempre o diabo dos detalhes.

Face a tão dramática descida do desemprego lembrei-me de ir ver os números do INE sobre população empregada e desempregada e fazer uma comparação simples: como estamos hoje, como estávamos há 10 anos, em 2009. Mês de referência, o último disponível. Confesso que não esperava encontrar aquilo que encontrei.

Em Abril deste ano havia 4,82 milhões de portugueses empregados entre os 15 e os 74 anos. E em Abril de 2009 o número era de… 4,82 milhões. Ou seja a população empregada hoje é igual à de há 10 anos. E a desempregada? Aí a diferença é substancial: 347 mil desempregados hoje, 757 mil há dez anos. A fiar-me nestes números o mercado de trabalho terá perdido mais de 400 mil trabalhadores em 10 anos.

As consequências desta realidade para o crescimento da economia são dramáticas. Se associarmos a este “encolhimento” do mercado de trabalho uma produtividade estagnada, essa teimosa realidade que os desmancha prazeres dos Banco de Portugal nos vieram agora mesmo relembrar, e uma demografia cada vez mais desfavorável – em dez anos, de 2008 para 2018, o número de idosos por cada 100 jovens passou de 115 para 157… –, temos um cenário bem sombrio. Mesmo com um Governo mais amigo do crescimento a situação já seria difícil, com uma maioria política que passa os dias a criar formas de dificultar o investimento privado e a maldizer as empresas não escaparemos a um futuro cada vez mais na cauda na Europa.

Mas claro que isto sou eu a dizer, um dos asnos pessimistas e desconfiados que recentemente até foi para a fila à porta de uma Loja do Cidadão antes de ela abrir, e que assim lá conseguiu ser atendido ao fim de umas horas. Se tivesse a presciência e o discernimento da senhora secretária de Estado teria chegado só à hora de ela abrir para depois ficar a saber que, entretanto, as senhas tinham acabado, como aconteceu a quem confiou no “espelho meu” onde o país reflectido surge sempre perfeito.

Por enquanto mesmo o país que resmunga não gosta no fundo de se ver ao espelho, ainda vai preferindo a fábula desse “espelho meu”. Como muitas histórias de embalar, a fábula vai dando para adormecer e esquecer inquietações. Até um dia. Que pode nem estar muito longe: afinal já somos o terceiro país do mundo onde os cidadãos menos acreditam que o Governo decide em função do interesse comum