A decisão de três juízes do TPI (um francês, uma cidadã do Benin e uma eslovena) de emitir mandados de captura para os líderes político e militar de Israel é uma telúrica mudança de paradigma na Ordem Internacional baseada em regras, porque é a primeira vez que o tribunal manda prender governantes de um Estado de Direito democrático.
A decisão parece, logo à partida, inquinada por irregularidades. A primeira é que a única informação sobre os mandados é um comunicado à imprensa.
Que não contém qualquer referência a processos em curso, limitando-se os juízes a alegar “motivos razoáveis para acreditar” que a diminuição da ajuda humanitária foi “calculada para provocar a destruição de parte da população civil em Gaza“. A impressão que fica é que aceitaram integralmente a argumentação da acusação, feita pelo Procurador Kharim Khan, um muçulmano sob investigação por crimes sexuais nas funções que desempenha, que recusou liminarmente deslocar-se a Israel e que, basicamente, se apoiou nos relatos e narrativas de grupos e organizações ligados ou empáticos com a FPLP e o Hamas, e em intervenções activistas de países como a África do Sul, cujo partido no poder (ANC), terá recebido milhões de euros do Qatar e do Irão.
O comunicado não descreve factos, muito menos mostra como eles podem ser atribuídos às intenções Netanyahu e Gallant. Do Hamas fala apenas uma vez, en passant.
Os factos omissos são gritantes, nomeadamente que:
- Houve um pogrom no dia 07 de Outubro de 2023 e um estado atacado não é obrigado a alimentar a população do agressor.
- O Hamas usa comprovadamente a distribuição alimentar para controlar e dirigir os movimentos da população.
- O Hamas usa deliberadamente a população e infraestruturas civis como instrumento de guerra, quer seja para se proteger de ataques, quer para se disfarçar e executar acções militares (como a utilização de mulheres e crianças como engodo para reconhecer métodos e posições israelitas).
- Gaza tem fronteira com o Egipto.
- Durante as duas primeiras semanas de guerra, havia combates na região fronteiriça e a mobilização para a zona de mais de 100 000 homens que Israel tinha de equipar e alimentar, bem como apoiar os milhares de refugiados internos, pelo que tudo isto tinha absoluta prioridade sobre quaisquer considerandos humanitários relativamente à população do agressor.
- A partir de 21 de outubro de 2023, Israel recomeçou a facilitar a ajuda humanitária através de Israel.
Curto e grosso, não há nada errado em prioritizar a ajuda às próprias forças e população. Israel foi acusado por Karim Khan de fechar as passagens de Erez e Rafah, e o TPI ignorou ostensivamente o facto de o Hamas ter destruído a passagem de Erez, e a de Rafah ser controlada pelo Egipto e pelo Hamas.
Os juízes dizem que têm motivos para acreditar que Netanyahu e Gallant usaram a fome como método de guerra, assassinaram, perseguiram e cometeram outros actos desumanos, mas perante o facto de Israel permitir a entrada diária na zona de combate, de milhares de toneladas de ajuda alimentar, falam apenas da sua subjectiva percepção de que a liderança israelita apenas o fez a contragosto, por pressão da comunidade internacional.
É, mutatis mutandis, como acusar alguém que acaba de ajudar um sem-abrigo, dando-lhe um pão, de o fazer passar fome e lhe ter dado o pão, não porque tivesse essa intenção, mas porque foi obrigado a fazê-lo.
Ora a verdade é que a exigência de que um estado agredido “facilite a ajuda por todos os meios à sua disposição” e “garanta que a população civil do inimigo seja adequadamente abastecida“, não é, nem nunca foi, um requisito do DIH.
A própria intervenção do TPI neste caso é impugnável, mesmo que Israel tivesse ratificado o Estatuto de Roma. O TPI é um tribunal complementar, só pode instaurar acção penal se os sistemas judiciais nacionais não quiserem ou não puderem processar adequadamente tais crimes cometidos por seus cidadãos.
Ora o comunicado não refere essa constatação. Israel é um Estado de Direito e o poder judicial é independente, como acontece em qualquer democracia digna desse nome. O sistema judicial israelita funciona, as FA israelitas estão a investigar mais de 300 possíveis crimes de guerra, há já mais de 100 investigações criminais. Não é pois admissível que se tirem conclusões sobre possíveis crimes de guerra de Netanyahu e Gallant sem saber se os soldados que eles supostamente mandaram cometer esses crimes, efectivamente o fizeram, seguindo essas supostas ordens.
Emitir mandados de captura para líderes de países democráticos antes de deixar que os mecanismos judiciais desses países actuem é um erro perigoso para todo o sistema. Parece pois evidente que o TPI não seguiu os procedimentos, ignorou os factos no terreno e exacerbou claramente a sua autoridade.
Contudo todas as objecções jurisdicionais de Israel foram rejeitadas como prematuras ou inoportunas. Para estes juízes, “os Estados não têm o direito de contestar a jurisdição do Tribunal, antes da emissão de um mandado de prisão”, o que é absolutamente kafkiano.
Quanto à falta de notificação, alegada por Israel, os juízes dizem que ela foi feita em 2021 e rejeitam que tenha surgido entretanto uma nova situação, como se a guerra que o Hamas desencadeou 7 de outubro de 2023 não existisse. O comunicado vai ao ponto de afirmar que “nenhuma mudança substancial ocorreu nos parâmetros da investigação sobre esta situação“, mas logo a seguir emite mandados de prisão para crimes supostamente cometidos entre 8 de Outubro e 20 de Maio de 2023. Inconsistente e contraditório, no mínimo.
Os juízes que emitiram este comunicado parecem não perceber que há uma guerra em curso, de um tipo completamente diferente daquelas para as quais se desenharam as actuais leis da guerra.
Esta não é uma guerra entre estados que agem de acordo com a mesma lei. É entre um estado vinculado ao DI e um exército terrorista que não respeita qualquer lei, se esconde atrás de civis, os usa como táctica e explora deliberadamente os interditos éticos e legais do adversário.
Objectivamente, Israel tem ido muito além do que o DIH exige. Fornece electricidade, água, medicamentos, facilita ajuda humanitária, avisa antecipadamente de acções militares, e a relação entre baixas militares e civis em Gaza, melhor que a de qualquer outro conflito conhecido, mostra-o à saciedade, sobretudo tendo em consideração o modo como o Hamas usa a população civil.
Como é evidente, a polémica decisão suscitou múltiplas reacções.
Israel e os EUA rejeitaram-na de imediato, por ser tendenciosa, ignorar que Israel é um estado de direito e extravasar as competências do tribunal. O novo líder da maioria no Senado dos EUA, John Thune, considerou-a ultrajante, ilegal e desonesta, e já avisou que o Senado aprovará sanções financeiras e outras contra o TPI e aos seus funcionários. A aprovação está garantida e contará, não só com os republicanos, mas também com expressivas maiorias democratas.
Michael Waltz, próximo National Security Adviser, disse haverá uma forte resposta ao viés antissemita do TPI e da ONU, a partir de Janeiro. Congressistas republicanos e democratas consideram que o TPI se comporta como uma “kangaroo court”, instrumentalizando o DI contra Israel, ignorando as causas e os contextos da guerra, e pediram também a aplicação de sanções. Recorde-se que, já em Junho, a Câmara dos Representantes aprovou por 247-155 um projecto de lei nesse sentido, na altura vetado por Biden.
A Argentina, a Chéquia, a Hungria e a Alemanha condenaram a decisão, por razões que vão da falta de jurisdição à deliberada omissão dos factos, passando por falhas processuais óbvias, negação do direito de Israel de se defender dos constantes ataques de organizações terroristas e a inadmissível equiparação de representantes de um Estado democrático com líderes de uma organização terrorista islâmica. A Hungria manifestou já a sua indisponibilidade para cumprir a ordem de detenção e a Alemanha não se pronunciou.
No outro lado da controvérsia, Turquia, Irão, Borrell, Irlanda, Espanha, Noruega, Jordânia, Hezbollah, Hamas e certas ONG como a HRW e a Amnistia Internacional, aplaudem de forma entusiástica estes mandados. Sintomaticamente, o único factor comum a estes actores é o marcado antissemitismo.
Portugal, pela voz do Dr. Rangel, veio logo colocar-se em bicos de pés, como vem sendo hábito desde que é ministro, proclamando solenemente que prenderá os líderes israelitas. Talvez num cenário agora possível, quando o TPI mandar prender o primeiro-ministro português, por “acreditar” que não fez o que podia para impedir a asneira que o soldado Silva supostamente fez na República Centro Africana, o Dr. Rangel meça melhor as palavras e guarde de Conrado o prudente silêncio, virtude de que manifestamente carece.
De qualquer modo, esta clivagem demonstra por si só que não se trata de justiça nem de direito, mas sim de política e ideologia e se uns rejubilam pelo activismo ardente do TPI, outros, mais razoáveis, consideram esta decisão como um erro grave, uma farsa activista ou um frete.
Ora a autoridade dos tribunais assenta na credibilidade, e a decisão de mandar prender Netanyahu e Gallant por lutarem contra um grupo terrorista que afirma abertamente querer destruir Israel e os judeus, e começou esta guerra com uma orgia de violência, despoja o tribunal da gravitas da legitimidade. Trata-se do mesmo fenómeno que vem minando a credibilidade de ONU e de muitos dos seus organismos, pelo que o TPI degrada a sua autoridade, e as suas decisões serão doravante olhadas de soslaio. O facto de haver países democráticos que se recusam a acatá-las e tencionam sancionar o órgão, é a prova disso mesmo.
E apesar de se fazer de conta que nada disto é importante, a verdade é que a maioria dos juízes do TPI é oriunda de países onde não existe Estado de Direito, e portanto são funcionários ao serviço dos poderes que os tutelam. Os odores a fumos sobre suspeitas de dinheiros milionários do Qatar já andam no ar.
Para a Ordem Internacional baseada em regras (e para o próprio TPI) pode ser mais um toque a finados e o que se segue está a emergir aos nossos olhos: um mundo hobbesiano onde a força será a principal regra.
Hoje em dia, apenas os países democráticos funcionam dentro do paradigma das leis, e esta decisão do TPI vem apenas demonstrar que alguns dos pseudo guardiões das regras não são de confiança e pertencem a um mundo diferente, que tem as democracias como inimigo. A perseguição ilegítima de líderes de uma democracia pode levar outros a deixar o tribunal, com medo de semelhantes acusações em guerras similiares contra grupos terroristas, como o ISIS, a al Qaeda, o Hezbolah, os Houthis, etc.
Para Israel, também há consequências. Em teoria os seus líderes não poderão viajar para os países membros do TPI e embora seja improvável que sejam presos ou julgados, isso limita severamente a cooperação com outras democracias em questões de segurança. No horizonte podem mesmo estar boicotes de armas e equipamentos, vitais para a sua sobrevivência.
Irão, Hamas, Hezbollah e toda a constelação antissemita ganham aqui um novo fôlego moral para persistirem na deliberada exploração táctica e estratégica do DIH. O Hamas, desde logo, têm agora muito menos incentivos para libertar os reféns e fazer qualquer tipo de acordo que não o satisfaça. Este simples facto, em que os promotores e executores do terrorismo rejubilam e uma democracia atacada no seu território é castigada, faz imediatamente perceber onde passa a linha entre o que é certo e o que é errado.
O antissemitismo nos campus, nos media, e nas ruas do Ocidente irá aumentar, sentindo-se agora mais legitimado e amparado. No fundo tem sido sempre assim: as maiorias antissemitas fazem aprovar relatórios, decisões, resoluções e declarações em vários órgãos onde pontificam, e essas posições são logo a seguir utilizadas, em circuito fechado, pelos antissemitas como “provas” universais e incontestáveis de legitimidade.
No imediato, Israel deverá pedir ao TPI, pelas vias judiciais próprias de um Estado de Direito funcional, que anule os mandados, ao abrigo de várias claríssimas disposições do Estatuto de Roma.
Se o conseguir, a Ordem Internacional baseada em regras terá mais uma oportunidade. Se falhar está condenada e o TPI com ela.