Não deverá haver muitas doenças na história da Medicina que tenham atraído tanto o estigma social como a doença mental. As pessoas sofrem de cancro, de diabetes, partem pernas, todavia, quando nos referimos ao doente mental dizemos que é um psicótico, um demente, não bate bem. É como se quem sofre de doença mental se transformasse na própria doença, ou, por outras palavras, como se a doença mental definisse quem a pessoa é, o que só vem reforçar ainda mais a estigmatização e o facto de olharmos estas pessoas como se, de alguma forma, fossem “diferentes” de todos os outros, como se se tratassem de bens com defeito.
Infelizmente esta estigmatização dos doentes mentais já vem de longe. Durante milhares de anos, a sociedade não tratou as pessoas que sofriam de depressão, de autismo, de bipolaridade, de esquizofrenia e de outras doenças mentais (definidas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da American Psychiatric Association) muito melhor do que tratou escravos ou criminosos: os doentes mentais eram presos, torturados ou mortos. Na Idade Média, a doença mental era considerada um castigo de Deus: julgava-se que estes doentes estavam possuídos pelo demónio e, por esse motivo, eram queimados na fogueira ou atirados para hospícios onde eram acorrentados às paredes ou à cama e simplesmente esquecidos. Finalmente, durante o Iluminismo, os doentes mentais foram finalmente libertados das suas correntes e foram criadas instituições para os ajudar. Mas, infelizmente, a estigmatização continuou e, muitas vezes, para o tratamento destes doentes recorria-se a inimagináveis terapias cruéis e desumanas. O regime nazi na Alemanha, um regime que sabemos não ter ficado conhecido pelas suas características humanitárias, assassinou ou esterilizou milhares de pessoas com doenças mentais em nome da eugenia.
No pós-guerra, houve apenas ligeiras melhorias, e quer a arte, quer a literatura ou o cinema mostraram-nos isso. Por exemplo, não é de todo possível esquecer o brilhante desempenho de Jack Nicholson no filme icónico Voando Sobre um Ninho de Cucos. À época, os doentes mentais eram eletrocutados, lobotomizados e, em geral, mantidos sob sedação. Raramente se procedia a outro tipo de tratamentos. Os doentes mentais eram mantidos afastados do resto do mundo por longos períodos, às vezes anos, como que sepultados em vida em asilos e hospitais, escondidos e esquecidos.
Hoje, o nível de estigmatização diminuiu, é certo, contudo, atrevo-me a dizer que continua a ser, muito provavelmente, a doença sobre a qual recai o maior estigma e acerca da qual o público em geral está menos informado. Utilizar expressões como “ela/ele é maluco” não contribui em nada para melhorar a situação. A indústria do entretenimento também não. Nos filmes, o vilão é, amiudadamente, uma personagem que sofre de uma doença mental e é quase sempre retratada como sendo violenta e perturbada, como acontece, por exemplo, com o protagonista do aclamado filme The Joker, com as suas 11 nomeações para o Óscar em 2019. Mas na realidade, as pessoas que sofrem de perturbações mentais são frequentemente muito mais vítimas de violência do que propriamente perpetradores.
Afinal porque razão existe esta estigmatização? Uma vez que as doenças mentais afetam o nosso comportamento, definem quem somos, muito mais do que qualquer outra doença. Contudo, não devemos limitar os doentes mentais à sua condição. É manifestamente injusto caracterizar e reduzir, nomes como Vincent Van Gogh, T. S. Eliot, Leo Tolstoy, Ernest Hemingway e centenas de outros artistas, poetas e dramaturgos, que enriqueceram a nossa herança cultural, aos seus surtos de depressão crónica, a episódios bipolares e psicóticos. Será que Churchill e Roosevelt, líderes mundiais que definiram a nossa história, não foram mais do que as meras manifestações dos seus problemas mentais? A sua essência foi, com toda a certeza, muito mais do que isso. Estar mentalmente doente não nos identifica moralmente. Na verdade, sofrer deste tipo de doenças contribui até para que o doente, muitas vezes, compreenda os outros muito melhor e seja bem mais sensível em relação à condição humana e aos que o rodeiam. As pessoas que sofrem de depressão ou de ansiedade crónica e que continuam, todos os dias, a fazer o seu melhor para funcionar em pleno e para manterem as suas relações com quem vive à sua volta, deveriam ser distinguidas pela sua resiliência e não diminuídas pela sua condição.
É um facto que a doença mental distorce o que consideraríamos “normal”. A nossa clara inabilidade para lidarmos com isto causa-nos frequentemente alguns embaraços. Não conseguimos ver a pessoa por trás da doença. Assim, é-nos mais fácil estigmatizá-la. Chamar-lhes “malucos”, “lunáticos”, “psicóticos”, “desequilibrados”. Mas este é um problema nosso, não dela.
Estes estigma e discriminação enredam as pessoas num círculo vicioso de doença. Deixam de procurar ajuda profissional ou até mesmo de se aproximar de amigos e de entes queridos que poderiam apoiá-los. Esta atitude só alimenta ainda mais os sentimentos de vergonha, de desespero e de isolamento, já de si associados a muitas destas patologias. Ao não receber o tratamento adequado o doente mental acaba por muitas vezes perder o emprego e ser atirado para a pobreza; no limite por ficar sem-abrigo, dependente de drogas e de álcool e, não raras vezes, cometer suicídio. O estigma denigre o valor das pessoas com doenças mentais, tratando-as como “mercadorias com defeito”. Curiosamente, não é apenas a população em geral que tem esta atitude. Muitos profissionais de saúde mental têm sido identificados como parte do problema. Tratando muitas vezes os seus pacientes como se fossem “loucos”.
O estigma e o desconhecimento generalizados (como se não fossem já suficientemente maus) geram uma série de políticas pÚblicas prejudiciais. Os governos canalizam poucos recursos para ajudar os doentes mentais. O nosso sistema social de saúde quase não tem recursos para lidar com as doenças mentais e os serviços psiquiátricos continuam ainda fortemente concentrados em grandes instituições centralizadas, com pouca ou nenhuma coordenação entre estas e os prestadores de cuidados de saúde primários. Necessitamos de serviços de saúde mental que, conjuntamente com tratamentos provados eficazes, promovam a elegância e o sentido estético.
Portugal tem alguns dos melhores especialistas do mundo em planeamento e organização de serviços de saúde mental. Temos um Plano Nacional de Saúde Mental, que existe desde 2008, mas ainda não foi totalmente implementado devido à diminuição no investimento no nosso Serviço Nacional de Saúde e à baixa prioridade atribuída aos doentes mentais. O Plano de Saúde Mental transformou-se, assim, em mais uma vítima da crise económica e financeira da última década. Julgo ter chegado a hora do Governo acordar para este problema.
Para que o leitor não pense que estamos a falar de um problema de somenos importância na sociedade, vamos olhar para alguns dados estatísticos pré-Covid. A Sociedade Portuguesa de Saúde Mental refere que, aproximadamente um em cada quatro Portugueses já sofreu de algum tipo de problema psiquiátrico (22,6% para ser exato). Portugal tem o segundo maior número per capita de transtornos psiquiátricos na Europa, secundando por um fio a Irlanda do Norte – o que não é de todo um recorde digno de orgulho! Nas economias mais avançadas, apenas um quarto dos pacientes com perturbações mentais procura ajuda e apenas 10% têm acesso a tratamento considerado adequado. Estes números, por si só, deveriam constituir um poderoso alerta para a necessidade premente de aumentar a consciencialização do público para estas doenças, para acabar com o estigma e lutar por melhores cuidados de saúde.
Mas, se estes números não forem ainda suficientemente convincentes, atentemos nas despesas que estas doenças acarretam à sociedade. Nos Estados Unidos, as doenças mentais graves causam perda de rendimentos no valor de 193,2 mil milhões de dólares americanos por ano e estima-se que os transtornos de depressão e ansiedade custem à economia global mais de um bilião de dólares, anualmente, em perda de produtividade. As pessoas com depressão têm um risco 40% maior de desenvolver doenças cardiovasculares e metabólicas do que as outras pessoas. A taxa de desemprego é muito mais alta entre elas e os alunos do ensino médio e superior com sintomas significativos de depressão têm duas vezes mais probabilidades de abandonar os estudos do que os seus colegas. O suicídio é a segunda maior causa de morte entre pessoas com idades compreendidas entre os 10 e os 34 anos. Porém, o suicídio é apenas uma parte do quadro; muitos adolescentes e jovens adultos – a nossa futura força de trabalho – acabarão por recorrer ao consumo de drogas e causarão danos a si mesmos ao auto-inflingirem lesões.
Tristemente, estes números deprimentes só aumentaram com a Covid-19. Como sabemos, os adolescentes dependem do seu núcleo de amigos para manterem o seu sentido de auto-estima e para conseguirem controlar a ansiedade e a depressão. Aliás, todos nós, jovens e adultos. SnapChat, TikTok, WhatsApp e Instagram não substituem a socialização. Por mais stressantes que sejam as relações dos adolescentes, elas são essenciais para a formação da sua identidade pessoal. Perder muito tempo enredado nos seus “próprios pensamentos” torna-se insuportável. Um adolescente, com quem conversei, disse-me: “Quando não posso ver os meus amigos, sinto que o mundo vai desabar.”
Os adolescentes sofrem com o stress e com as incertezas sobre o futuro dos seus pais. Alguns receiam ficar para trás em relação aos seus estudos por não terem acesso às mesmas condições que outras crianças mais privilegiadas. Quando o nosso Governo insiste em manter as nossas escolas fechadas, por mais tempo do que qualquer outro Estado europeu, mostra como tem sido, e continua a ser, absolutamente imprudente em relação à saúde mental das gerações futuras.
Os adultos também têm vindo a ser afetados e de que maneira. Os profissionais de saúde começam a mostrar sinais de esgotamento, correndo ainda o risco adicional de sofrerem de níveis crescentes de ansiedade e depressão. Aqueles que perderam os seus empregos, enfrentam um futuro desconhecido e muitos engrossam já as filas para as refeições solidárias. Quase todos nós, especialmente pais com filhos mais novos, temos dificuldade em conciliar o trabalho em casa com a vida familiar. Níveis de ansiedade, depressão e problemas associados ao aumento do consumo de álcool e drogas aumentaram em flecha. A Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT) poderá vir a tornar-se uma consequência, mais duradoura do que gostaríamos, do isolamento social e da estagnação económica. A pandemia de coronavírus constitui a maior ameaça à saúde mental desde a Segunda Guerra Mundial, e prevê-se que o seu impacto venha a ser sentido durante vários anos, mesmo após o vírus ter sido controlado.
Há, no entanto, uma boa notícia. O bem-estar mental chegou finalmente às manchetes da comunicação social. Partidos políticos como a Iniciativa Liberal e a Juventude Social Democrática (JSD) apresentaram à Assembleia da República programas de mitigação dos efeitos da Covid-19 nas doenças mentais. O Governo criou, finalmente, uma linha telefónica à qual as pessoas podem recorrer nos seus momentos de desespero. Foi anunciado o aumento do número de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde para responder ao acréscimo da procura. Mas estas medidas estão longe de ser suficientes e não devem terminar com o fim da pandemia.
Dever-se-ia, prioritariamente, criar condições para a promoção de um rápido acesso aos cuidados de saúde mental, fechar grandes instituições hospitalares psiquiátricas e promover a integração na comunidade das pessoas que sofrem de perturbações mentais. Isto traria duas vantagens enormes. Em primeiro lugar, a de dar às pessoas que sofrem de transtornos mentais um melhor acesso aos cuidados, ao mesmo tempo que se lhes permite que mantenham as suas relações familiares, o seu círculo de amigos e, ainda, que conservem os seus empregos mesmo durante o tratamento. A assistência é providenciada mais cedo e a reabilitação torna-se mais fácil e rápida. Em segundo lugar, a de lhes permitir que vivam num ambiente bem mais favorável ao sucesso do seu tratamento, com uma maior garantia de proteção dos direitos humanos e, em última análise, menos estigma.
Campanhas de informação destinadas à sociedade em geral e a inclusão do tema das doenças mentais na educação das crianças nas escolas deverão também ser prioritárias. Muitos de nós tendemos a julgar rapidamente. A doença mental é vista quase como uma falha de carácter, um defeito, uma fraqueza, ou uma ameaça à sociedade. Deveríamos ter bem mais cuidado com estes juízos de valor, dado que nenhum de nós está livre de vir a sofrer de uma depressão ou de um transtorno de ansiedade em algum momento da nossa vida. Por isso, da próxima vez que alguém se aproximar de si em busca de apoio, pelo amor de Deus, não lhe dê um sermão pedindo-lhe que pense em “todas as coisas maravilhosas que tem na sua vida” ou não o aconselhe a “muito simplesmente ultrapassar o problema”. Isto é o mesmo que dizer a um paraplégico para parar de reclamar, meter pés ao caminho e correr a maratona. Ouça-o, apoie-o, tente conseguir-lhe alguma assistência, mas, acima de tudo, aceite-o como o indivíduo incrível e único que é. Afinal, todos nós temos um pouco de louco, a nossa parcela de “peculiaridades”.
Mahatma Gandhi disse que “A grandeza de uma nação é medida pela forma como ela trata os seus membros mais fracos.” No mínimo, determina o caráter duma nação. Por muito inconveniente que possamos achar este problema, não nos podemos permitir continuar a ignorá-lo.