O ser humano mata outros seres humanos para conquistar.
Mata para obter riquezas.
Mata por ódio, por despeito, por inveja.
Mata por fanatismo religioso ou nacionalista.
Mata para ter razão, motivo que Robert Musil, no seu livro-oceano “O Homem sem Qualidades”, diz ser uma das mais importantes causas para a violência no Mundo.
Pode até matar por desequilíbrio psíquico.
Mas mata também, e mata mais vezes do que se pensa, para obter Fama e Imortalidade.
Não sei nem saberei tão cedo se foi esse o caso de Stephen Paddock, nativo americano, habitante de Mesquite sem antecedentes criminais ou militares, que anteontem fuzilou, a uma distante queima-roupa, centenas de pessoas em Las Vegas. O Estado Islâmico reivindicou a autoria da tragédia, o que vai sendo um padrão – reivindicar qualquer ataque ou assassínio em massa, seja onde for que aconteça, perpetrado por quem quer que seja. Permanece a dúvida e com ela o medo, o medo que paralisa, seja a acção de homens livres seja o constructo de uma sociedade contemporânea, civilizada e tolerante.
Não sei se foi o Estado Islâmico. Mas a facilidade do acesso a armas é determinante para o número, a frequência e letalidade dos ataques. Nos EUA há mais de 300 milhões de armas de fogo legais em mãos civis, quase uma por cada homem, mulher e criança (!); em 2016 houve 384 tiroteios em massa, aqueles com 4 ou mais pessoas feridas ou mortas por armas de fogo. Esses mortos e feridos não são senão uma ínfima parte das vítimas – mais de metade suicídios.
A pergunta é: porquê? A razão sempre evocada é a 2ª emenda à Constituição: “Sendo uma milícia bem regulada necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo a guardar e usar armas não pode ser infringido”. Vai longa a discussão entre a “teoria do direito individual” de uso de armas, que considera que não podem ser aplicadas restrições ao seu uso e a “teoria do direito colectivo”, segundo o qual o legislador, seja ele local, estadual ou federal, tem autoridade para regular o uso de armas de fogo por parte dos cidadãos individuais. No Supremo Tribunal norte-americano, a jurisprudência oscila entre as duas teses; em 1939 estabelecia que a 2ª emenda visava a eficácia das forças armadas (da “milícia”), pelo que os Estados podiam regular o uso individual de armas; os casos Columbia v. Heller, de 2009, e McDonald v. Chicago, de 2010, levaram à quase reversão dessa teoria, decretando o direito individual ao uso de armas.
E a pergunta volta a ser: porquê? Com um número assustador de vítimas por armas de fogo e o aumento constante de tiroteios na praça pública – mais de 50 mortos em Las Vegas, um recorde -, como justificar a continuação da defesa do direito de porte de arma, afinal assente numa prescrição velha de 150 anos, quando o Oeste era selvagem e a lei uma mera aspiração?
Há um racional para a defesa do uso individual das armas de fogo. Em 2012, após o massacre numa escola em Newtown, Le Pierre, vice-presidente da poderosa National Rifle Association (NRA), o mais influente lobby pró-armas do país, disse que “um tipo mau com uma arma só pode ser parado por um tipo bom com uma arma”. E se nesse caso a ideia era colocar homens armados em todas as escolas do país, ela – a ideia – vai mais longe do que isso: trata-se de armar os cidadãos como forma de combater o crime com armas de fogo.
Donald Trump repetiu-o mais tarde inúmeras vezes: se mais pessoas estivessem armadas, menos teriam sido vítimas dos vários tiroteios em massa, na América ou alhures – e citou Paris como exemplo. A responsabilidade pelas vítimas, defende Trump como tinha defendido o vice-presidente Wayne Le Pierre da NRA e como defendem os militantes das “armas para todos” é dos “bad guys” (os meninos maus que o Padre Américo dizia não existirem); a posse de armas pelos “bons” chegaria para diminuir as tragédias – e o seu grau.
A sério?
Bom, a verdade é que nos EUA já há 300 milhões de armas de fogo em mãos civis e os tiroteios, e os mortos com armas de fogo, e as vítimas de disparos acidentais (incluindo, muitas, mas muitas crianças) impressionam. Quantas armas será preciso distribuir aos “bons” para acabar com os “maus” e diminuir a virulência do seu uso?
Mas há mais. Em 2014, o FBI apresentou um estudo sobre 160 tiroteios ocorridos entre 2000 e 2013 e descobriu que apenas em 5 casos, civis armados ripostaram aos pistoleiros (e 4 deles eram seguranças); em 21 casos, civis desarmados conseguiram imobilizar os atacantes. Num estudo publicado em 2017, o professor de Stanford John Donohue concluiu que o crime aumentou substancialmente mais nos Estados que autorizam o uso de armas; reforçou assim um estudo anterior seu, em que concluía que mais armas levam a mais crimes.
Corria o ano de 356 A.C na cidade de Éfeso, costa do mar Egeu. Heróstrato, um obscuro cidadão desejoso de ganhar a Imortalidade, incendiou o magnífico Tempo de Artemisa, uma das 7 Maravilhas do Mundo. Megalómano, quis deixar o nome para sempre marcado nos anais da cidade e daí para a Posteridade. Os efésios fizeram-lhe a vontade, proibindo por decreto sob pena de morte a pronúncia do seu nome. A epopeia negra de Heróstrato demonstra como a vaidade humana é sempre um factor decisivo na produção de actos ignóbeis e vis.
Por desejo de conquista, por fanatismo – do Isis ou outra causa radical -, por loucura ou pela Fama por Heróstrato buscada, os seres humanos continuarão a matar-se, um a um, um a muitos, a si próprios. Nada o evitará totalmente enquanto a natureza humana for o que é; e ela não vai mudar tão cedo.
Muita coisa pode ser feita para diminuir o número ou o impacto dos actos de violência, mas pôr mais armas nas mãos das pessoas não é decerto o melhor remédio. Com elas na mão, mil Heróstratos vingarão.