Talvez seja só um sobressalto, uma lomba na relação constante e próxima entre os Estados Unidos (EUA) e a Europa.

Talvez a imposição de tarifas sobre o aço e o alumínio à União Europeia (UE) por parte da América não chegue a concretizar-se, pois afinal Trump decidiu à última hora adiar por um mês o seu início. Talvez se evite a retaliação europeia já anunciada, de impor tarifas a centenas de produtos como manteiga de amendoim, bourbon, cigarros ou barcos de recreio. E talvez o contra ataque tarifário americano não desencadeie respostas recíprocas, elevando o proteccionismo comercial a um nível impensável há poucos anos.

Ou talvez não. Talvez esteja a começar uma verdadeira guerra comercial, levando à perda de centenas de milhares de empregos e ao final do período de prosperidade dos últimos anos. Talvez seja o princípio do fim do Ocidente, na formulação que engloba Europa e Estados Unidos, com eventual prolongamento aos antípodas (Austrália e Nova Zelândia). Esse conceito transatlântico de Ocidente é hoje contestado. Mas não pode ser ignorado, considerando a importância que ainda tem o tandem Europa/EUA. Apesar dos desafios que chegam da China, na economia, da Rússia, na força armada, da Índia, na investigação e ciência, a relevância dos velho e novo continentes, unidos pelo Oceano Atlântico e interesses comuns, é indiscutível.

Juntas, as economias europeia e norte-americana representam metade do PIB e um terço do comércio mundial. O investimento dos EUA na Europa supera em três vezes o feito na Ásia. A NATO, com todas as suas insuficiências, ainda é uma poderosa aliança militar, pelo menos no papel, restando saber qual o grau de vontade política que sustenta, e dessa forma credibiliza, a promessa do artigo 5º do Tratado (um ataque a um membro é um ataque a todos).

Ora a imposição de tarifas sobre o aço e o alumínio pode custar à Europa 2,8 mil milhões de euros. Mas se uma guerra comercial for desencadeada, são os 630 mil milhões de euros de comércio entre a União e os EUA a ser afectados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sábado passado, num comício em Michigan, Trump disse que a UE foi “formada para se aproveitar dos EUA”. O ano passado criticou a Alemanha e o “enorme défice comercial com os EUA”, considerando que os europeus pagam menos do que devem para a Nato e que isso “tem de mudar”. Recentemente afirmou que “se olharmos para a UE, ela está contra nós em termos de comércio (…), é quase como se não pudéssemos fazer ali negócios”. Curiosa afirmação, sabendo-se que a UE é o maior mercado de exportação dos EUA; que o investimento directo norte-americano na Europa é de cerca de 50% do total, algo como 2,9 biliões de dólares (!);  e que o investimento directo europeu nos EUA é superior  a 60% do total, responsável por mais de 4 milhões de empregos. Se isto não são negócios, o que serão negócios?

É verdadeira e séria a preocupação de Trump com os gastos na defesa. Mas não é nova. Em 2003, no tempo de Bush Júnior, disse-o um dos ideólogos do neo-conservadorismo, Robert Kagan, no livro “Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order”. Aí escreveu que a Europa emergiu do fim da guerra fria como o paraíso político sonhado por Immanuel Kant na “Paz Perpétua”, continuando os EUA, com os seus orçamentos militares gigantescos e a sua visão de intervenção armada global contra Estados párias, encerrado num mundo hobbesiano de violência e anarquia. Em matéria de estratégia internacional, defendeu Kagan, os americanos são de Marte e os europeus de Vénus.

Parece razoável exigir um maior envolvimento europeu na defesa do Ocidente, e a UE respondeu, nomeadamente, com o desenvolvimento da cooperação estruturada permanente; mas é no mínimo duvidosa a possibilidade de convergência estratégica em matéria de política externa com a actual administração norte-americana. E se a União, envolta na contradição seminal que a caracteriza como gigante económico e anão político (e militar), sem um orçamento próprio que viabilize um esforço de defesa consistente, não pode dar resposta às exigências de Trump, certo é que, só para dar um exemplo, o ataque recente à Síria teve a participação de dois países europeus, o que foi extremamente útil à imagem americana.

Isto é, se os aliados europeus dos americanos colaboram quando estão em causa sobretudo os interesses estratégicos da Casa Branca, ao ameaçar uma guerra comercial com a Europa o Presidente norte-americano põe em causa essa aliança. E é curioso que exija o fim de barreiras aos produtos norte-americanos quando ele próprio obstaculizou o TTIP, gizado justamente para reduzir obstáculos ao comércio e ao investimento.

O caso da agricultura é exemplar. Trump queixa-se que os norte-americanos não conseguem vender os seus produtos na UE “tão facilmente como deveriam”. Não explica que isso sucede porque o acesso ao mercado europeu tem de ser aberto a todos os membros da Organização Mundial do Comércio (WTO), de acordo com as regras da organização (qualquer solução tem de ser “WTO-consistent”), e os agricultores norte-americanos não conseguem competir com outros produtores em todos os mercados. É o caso do mercado da carne, em que a exportação norte-americana caiu de 98% da quota europeia para 33% em 7 anos.

Donald Trump é um negociador. Como se viu no caso da Coreia do Norte, os seus métodos são duros, quase brutais, mas não pode ser-lhe retirado mérito no sucesso da súbita reconciliação, veremos se durável, entre a Coreia do Sul e aquele a quem chamou “little rocket man”, Kim Jong-un, que agora trata como “líder respeitável” e “aberto”. Mas se há tácticas negociais que resultam nalgumas situações, noutras podem causar danos irreversíveis.

A relação transatlântica tem sido o pilar da estabilidade e segurança europeia e mundial há décadas. O apoio norte-americano à Europa da democracia e dos direitos humanos garantiu a vitória contra as forças do obscurantismo e do fascismo. A Aliança entre uma América pujante defensora do mercado livre e uma Comunidade Europeia unida assente em valores, ajudou ao advento da 3ª vaga democrática identificada por Samuel Huntington, hoje aparentemente em refluxo, e foi decisiva para pôr fim à experiência concentracionária do comunismo de Estado.

Ao ameaçar lançar uma guerra comercial contra os aliados tradicionais do seu país, confundindo proteccionismo e comércio livre, seja ou não uma táctica negocial, Donald Trump cria uma das maiores ameaças de sempre ao Ocidente. Põe em causa uma civilização baseada em valores alicerçados em séculos de sofrimento, ideólogos e líderes brilhantes e corajosos, que fizeram da aliança entre a Europa e os EUA um baluarte de liberdade, democracia e direitos humanos.

Mas talvez não aconteça nada disso. Talvez o bom senso prevaleça.