Tantas vezes incapazes de comunicar entre si, tantas vezes entrincheirados, tantas vezes presos a caricaturas que se constroem para efeitos puramente panfletários, sociais-democratas e socialistas deram esta semana um exemplo de dignidade e de decência perante o infeliz e lamentável incidente que resultou na morte de Odair Moniz. Quando o ar dos tempos pede gritaria e radicalismo, o ‘centrão’ soube estar à altura — e saber estar à altura é tão somente ser responsável, moderado e sensato, recusando uma visão maniqueísta de uma realidade multidimensional.
Não estiveram sozinhos, é certo. De um modo geral, quase todos os partidos, do PCP à Iniciativa Liberal, souberam respeitar o momento de especial delicadeza que se viveu no país. Mas eram a estes dois — PS e PSD –, pelas especiais responsabilidades que tiveram e têm nestes 50 anos de democracia, por serem líderes da oposição e Governo, respetivamente, a quem se exigia que dessem o exemplo. E deram. Uma centelha de esperança de que é possível encontrar moderação, se não na imediata resposta aos desafios, pelo menos no diagnóstico dos problemas. Não é coisa pouca. É o princípio de qualquer construção democrática.
Sobraram dois. Dois partidos, Bloco de Esquerda e Chega, que se comportaram como pirómanos políticos. Que tentaram virar comunidades contra polícias e polícias contra comunidades, país contra país, que tentaram rachar a meio e recolher os despojos de guerra. Com tiradas de gravidade diferente, muito diferente, é certo, com comportamentos mais e menos dignos, mas com o mesmo e indisfarçável objetivo político: sobressair no caos enquanto se alimentam dele, ignorando que as primeiras vítimas da polarização artificial que tentaram e tentam criar são aqueles que juram querer defender.
Como foi sendo atestado pelos vários testemunhos que puderam (finalmente) ser escutados em horário nobre, nos jornais, nas televisões e nas ruas, nem estas comunidades querem ter nas forças de segurança um inimigo, nem as forças de segurança encaram estas comunidades como campos de treino para a prática de tiro ao alvo. Que não haja dúvidas: alimentar um discurso com um claro pendor anti-polícia (que existe e é grave) prejudica as reivindicações justas destas comunidades; alimentar, em nome da defesa da honra da polícia, um discurso com um evidente subtexto racista (que existe e é insuportavelmente grave) envergonha as forças de segurança.
Não tiveram os porta-vozes que mereciam e de que precisavam. A generalização corrói e transforma vítimas em vilões sem rosto porque todos se tornam iguais. Estas falsas dicotomias ajudarão seguramente a animar os tiffosi, mas fazem zero pela resolução dos problemas. As mudanças que se exigem não se fazem contra a polícia (como sugerem uns), nem contra as comunidades (como sugerem outros). Não há Estado de Direito sem forças de segurança bem dirigidas, com autoridade e com recursos humanos e técnicos para fazerem aquilo que mais ninguém consegue fazer: assegurar a nossa proteção. E também não há Estado de Direito onde uns são sempre suspeitos até prova em contrário só porque nascem, crescem e moram numa “zona urbana sensível”.
PS e PSD deram o exemplo na forma sensata e prudente como reagiram ao que aconteceu na Cova da Moura. Terão agora a responsabilidade de agir para que não haja mais vítimas de um fenómeno que os dois partidos, pela inação de décadas, ajudaram a alimentar na quase comovente esperança de que o barril de pólvora, por mais que quente que ficasse, nunca iria explodir. Sempre na base da fezada da excecionalidade lusa e no mito dos brandos costumes.
Os dois partidos (com especiais responsabilidades no caso do partido que governa, naturalmente) não podem ter medo de criar um clima de tolerância zero para as práticas de uso excessivo de força policial, sem medo de serem acusados de cumplicidade com a “rascaria” e a “bandidagem”. Que se encontrem responsáveis e se apurem responsabilidades, que se combata o corporativismo que encobre e mente, que se elimine a “fruta podre” das forças de segurança, como prometeu a própria ministra da Administração Interna.
Mas também não podem ter receio de combater com todos os meios o sentimento de impunidade, a insegurança e as bolsas de delinquência e criminalidade organizada que vão crescendo junto e a partir destas periferias, cujas primeiras vítimas são sempre as comunidades onde se instalam, transformando em reféns aqueles que só querem uma vida melhor. Sem medo de serem acusados de cumplicidade com a “extrema-direita”, como se querer um país seguro fosse uma cedência à direita mais radical ou como se o Estado fosse obrigado a ser complacente com a violência em nome de uma qualquer culpa coletiva.
A cor de pele e a origem social não podem ser um convite para que o bastão desça mais rápido. Mas também não podem ser atenuantes, como se ser pobre e excluído seja uma razão para se julgar e para se estar acima da lei. Uma farda de polícia não pode ser um livre-trânsito para bater sem perguntar o nome. Mas também não pode ser o mesmo que ter um alvo desenhado nas costas.
O centro político tem obrigação de resgatar estas bandeiras e de não ter medo de enfrentar os respetivos extremos, sem se deixar contaminar e sem esquecer que só uma abordagem multidisciplinar (mais e melhor Habitação, mais e melhor Educação, mais e melhor Ação Social) junto destas comunidades pode interromper (minimizar, pelo menos) o ciclo de pobreza, de exclusão, de esquecimento e de violência a que estão votadas. Haja coragem, determinação e maturidade democrática para o fazer.