Cada crise parece ser mais perigosa que a anterior. É um erro de percepção que cometemos com frequência. Descontando o possível erro, esta parece ser a mais perigosa crise que vivemos, com riscos talvez só comparáveis com o tempo em que o regime democrático ainda não estava suficientemente consolidado, nos primeiros dois a três anos após o 25 de Abril de 1974.

Vamos enfrentar sem dúvida uma crise económica sem paralelo na história recente. Uma quebra da produção 7,6%, como aconteceu em 2020, a que se juntam as restrições à recuperação, pelo menos neste primeiro trimestre, deixam feridas graves que vão condicionar a recuperação não apenas da economia, mas também da nossa vida como comunidade.

Todo o enquadramento é já muito preocupante. Este segundo confinamento está a traduzir-se num desequilíbrio psicológico mais grave para muitas famílias, encerradas em pequenos apartamentos com filhos. Basta falar com alguns médicos ou estar atento ao que os jornais e as televisões vão reportando para perceber que a resistência se vai quebrando.

Essa maior fragilidade de todos nós é lamentavelmente acompanhada por um Governo que se mostra menos capaz de transmitir uma mensagem de confiança. O primeiro-ministro, a ministra da Saúde e o ministro da Administração Interna, os principais protagonistas da gestão da crise, esquecem-se agora com mais frequência que estão a ser olhados por todos nós como os pilotos deste navio. Estão cansados, percebe-se. Mas terão de fazer o esforço de não se esquecerem que, quando respondem aos jornalistas, estão a falar para os portugueses que os ouvem com a atenção que esta crise obriga.

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Prometeram muito, cumpriram muito pouco. Este confinamento tão longo poderia ter sido evitado se tivessem sido mais prudentes e corajosos. Em vez disso, satisfazem-se com o facto de terem tido o aval dos outros partidos para a liberdade no Natal, esquecendo-se que foi o Governo que levou tempo demasiado a tomar decisões depois do Natal.

Mas mesmo admitindo que o que aconteceu esteve fora do controlo do Governo, é imperdoável que não tivessem preparado o país para o cenário de um segundo confinamento. No dia 2 de Março, esta terça-feira, completa-se um ano do primeiro caso de Covid-19 em Portugal e estamos a ouvir a promessa das mesmas coisas, como testes, rastreamentos e as condições para que as crianças estudem em casa.

Contrariamente ao que aconteceu no primeiro confinamento, neste momento e apesar de a vacinação estar a correr agora bem, o Governo transmite-nos a ideia de que estamos abandonados. Temos o Governo a aparecer nas vacinas, mas tivemos um Governo desaparecido no auge da crise, sem ninguém a transmitir uma mensagem de confiança quando se acumulavam ambulâncias à frente do Hospital de Santa Maria. Até na insistência de não revelar nenhum plano de desconfinamento, com o argumento de que é prematuro, tratando-nos como crianças, parecem revelar essa desorientação. Podiam usar também o argumento segundo o qual a divulgação do plano introduziria uma pespectiva de esperança. Mas não o querem.

Juntemos à imagem de cansaço e desorientação do Governo a restrição financeira que tem impedido que se concretizem os apoios. O mais recente exemplo da Groundforce, com os trabalhadores sem receberem o seu salário, porque o Ministério das Finanças não valida a garantia de Estado para um empréstimo pedido desde o ano passado, mostra bem como os apoios estão a ser geridos. Percebe-se a preocupação que devia, aliás, servir de ensinamento para o que não se devia ter feito durante os anos de 2015 a 2019, um tempo em que não se aproveitou devidamente a prosperidade para corrigir as contas públicas.

Paralelamente a tudo isto, assiste-se a uma fúria censória protagonizada até por pessoas que sofreram essa mesma censura. A Carta Aberta às televisões generalistas tem mensagens aterradoras por aquilo que revela que são as convicções sobre a liberdade e sobre o direito das pessoas a serem informadas. Vale a pena ler a resposta da RTP, Em defesa da Democracia,  assim como o que escreveu  Francisco Mendes da Silva com o título “Carta aberta do diácono Remédios”. A censura, como diz, começa assim, com estes pequenos passos.

O que é igualmente aterrador é ver aquela carta aberta, dirigida às televisões, subscrita por pessoas, nomeadamente médicos, que sabem bem que aquilo que as televisões reportaram e os jornalistas em geral noticiaram esteve longe do que poderia ser a exploração da desgraça. Porque o que se passou naqueles dias dramáticos foi muito pior do que aquilo que se reportou e há subscritores da carta que o sabem bem, ou deviam saber. Para já não falar da ausência de preocupação no tempo em que se relatava o que se passava em Itália, no Brasil e nos Estados Unidos.

Essa carta é mais um elemento que torna esta crise muito perigosa. No tempo da designada troika, o escrutínio do poder existia, usando todos os meios, incluindo o Tribunal Constitucional. Nenhum desses subscritores se lembrou, e bem, de fazer apelos patrióticos na altura. E poderiam ter tido também argumentos, nomeadamente pela confiança que precisávamos de reganhar dos investidores.

É difícil encontrar no passado recente um escrutínio tão fraco do poder. O PSD anda perdido nas suas lutas internas, o CDS está uma sombra do que era, o PCP escolheu apoiar o Governo e o BE envolve-se em guerras que, de repetitivas que são, se começam a deixar de ouvir. Os pequenos partidos são demasiado pequenos. E os órgãos de comunicação social fazem o que podem com a escassez de recursos que sofrem.

O quadro apresenta-se como muito preocupante. Temos uma crise sanitária que nos desequilibra a todos, com um Governo desorientado, que disfarça cada vez pior o seu autoritarismo, ao mesmo tempo que vai alargando o seu poder para além do que seria natural numa crise deste tipo. Vamos em breve ver as feridas da crise económica que se traduzirá inevitavelmente em instabilidade social. Teremos de um lado o Governo a desenvolver os seus tentáculos, sem oposição ou escrutínio politicamente relevante e com muito dinheiro para distribuir. E do outro uma comunidade que nunca sabemos bem como pode reagir.

Esta é de facto uma crise muito perigosa, pelos danos no nosso bem estar, mas também, e especialmente, pelos riscos de o Governo estar a alargar demasiado o seu poder sem o devido escrutínio e num tempo em que vai ter muito dinheiro para gerir.