Todas as palavras que conseguir escrever ao longo desta breve crónica serão escassas e ficarão a anos-luz da realidade-real. Nunca ninguém conseguirá dizer o que viveram e vivem as mulheres atrozmente violadas por bárbaros que usam a violação como arma de guerra.

– Não estamos a falar de uma relação sexual, estamos a falar de um ato de guerra cometido por homens que não usam apenas a sua supremacia física, a sua força e o seu corpo para violar raparigas, crianças e mulheres de todas as idades. Estamos a falar de homens que as violam brutalmente e a seguir disparam as suas armas contra os órgãos genitais das vítimas. Homens que derramam sobre elas ácidos e químicos altamente abrasivos. Homens que usam as suas espingardas com toda a crueldade para reforçar a violação e dilacerar os seus órgãos internos. Monstros que acendem fogo e queimam as partes mais íntimas de cada rapariga e mulher que violam.

Tudo isto e muito mais me foi dito pessoalmente, em voz baixa, pelo próprio Denys Mukwege, o médico ginecologista congolês mundialmente conhecido pela sua ação humanitária, que recebeu o Prémio Nobel da Paz de 2018, antes de nos sentarmos para jantar em petit comité, no campus da Nova SBE, a universidade onde dou aulas e este ano serviu de palco às Conferências do Estoril. Tudo isto é muito mais do que ele tinha conseguido dizer em voz alta, na sessão pública em que participou, onde o seu silêncio gritou tão alto como as suas palavras.

No palco, Denys Mukwege contou detalhes atrozes e todos ficámos conscientes das sevícias a que as mulheres são submetidas na República Democrática do Congo, país devastado, desmembrado por uma guerra civil que já fez mais de 6 milhões de mortos e onde milhares de mulheres continuam a ser vítimas de violações massivas. Aliás, onde todas as mulheres são potenciais vítimas das ferozes bestas em que se tornaram os homens que se alimentam do ódio e perpetuam uma guerra estritamente motivada por interesses económicos e lutas de poder. Um conflito que não envolve grupos de fanáticos religiosos, como acontece noutras latitudes.

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Tudo o que Mukwege contou, primeiro em voz alta e, depois, em voz baixa, foi ensurdecedor. Fica a gritar em nós, a fazer um terrível eco para sempre.

– Quando pensava que já tinha visto tudo, ainda não tinha visto quase nada. No dia em que me trouxeram um bebé de 6 meses, uma menina, com os órgãos internos à vista, fora do seu próprio corpo, não consegui dormir nem falar durante muitos dias.

Contou-me isto enquanto conversávamos, olhos nos olhos, ainda de pé. Talvez me tenha contado tanta coisa em tão pouco tempo por lhe terem dito que estava ali uma jornalista.

– Precisamos muito de vocês, os jornalistas. Precisamos que não parem de denunciar esta realidade porque o mundo precisa de saber o que se passa, e estas mulheres e crianças precisam de sentir que são ouvidas e não ficam esquecidas.

Em 2019, um ano depois de receber o Nobel da Paz, repartido com Nadia Murad, iraquiana yazidi raptada pelo Daesh e mantida como escrava sexual de militantes do Estado Islâmico em 2014 e que, depois de conseguir escapar, se tornou a principal voz ativa na luta pelos direitos das mulheres, Denys Mukwege veio a Portugal falar da realidade que vive no seu país.

– Disse em várias entrevistas que dei ao longo destes anos que fiquei horrorizado quando, em 1999, tratei a primeira mulher que chegou ao meu hospital por ter sido violada várias vezes por vários homens que, a seguir, dispararam contra os seus genitais. Na altura pensei que era obra de gente enlouquecida pela guerra, porque o estado em que aquela mulher chegou era completamente anormal. Mas disse e volto a dizer que não sabia que iria passar o resto da minha vida a tentar curar e a acompanhar mulheres que continuam a ser alvo desta violência.

Facínoras. Bestas. Perversos. Assassinos. Em nenhuma destas palavras cabe toda a ignomínia praticada por seres absurdamente desumanos. Por gente que tem consciência daquilo que faz, pois a violação tornou-se uma arma de guerra. Estratégica e letal. Mata moral e emocionalmente. Dizima populações inteiras, comunidades que são forçadas a assistir a estas torturas.

Denys Mukwege tem olhos bondosos e tristes, olhos de quem viu demais. Custa-lhe viver e testemunhar tudo isto, mas sabe que não pode deixar de o fazer. Não pode calar-se e também não se pode retirar de cena. Também não pode abandonar o seu hospital, mesmo sabendo que corre perigo de vida. Ao fim destes anos todos a socorrer e a resgatar a vida e a dignidade de quem foi ferido de morte, o Hospital de Panzi tornou-se um alvo a abater. Mas também se converteu no lugar onde as mulheres congolesas se sentem mais seguras pois o trabalho de Mukwege não é apenas médico, também é emocional e, tão importante como o resto, empreendedor. A equipa de Mukwege está preparada para socorrer fisicamente, mas também para curar emocionalmente e dar ferramentas e suporte material para estas mulheres esquecerem o passado e recomeçarem as suas vidas.

Numa entrevista à CNN, já depois de ter recebido o Nobel da Paz, mas também o Prémio Olof Palme e o Prémio Sakharov e vários anos depois de ter sido eleito Africano do Ano (também em Portugal Denys Mukwege recebeu o Prémio Calouste Gulbenkian – Direitos Humanos em 2015 e agora, durante as Conferências do Estoril, recebeu o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade Nova de Lisboa), dizia eu que numa entrevista à CNN Mukwege declarou:

– Posso ser a única pessoa a quem estas mulheres contam o que sentem.

E é certamente por conhecer toda a verdade que os seus olhos bondosos parecem estar sempre a chorar. Mesmo quando sorri ou quando a sua cara se alegra, os olhos permanecem tristes e enevoados.

Denys Mukwege não tem medo de fazer o que faz, apesar de também ele já ter sido alvo de ameaças e as suas filhas terem sido atacadas, mas salvas a tempo. Tem no seu hospital uma legião de mulheres que ficam de plantão dia e noite para o protegem de eventuais ataques das milícias congolesas. As mesmas que chegam às vilas e aldeias com um propósito único: destruir sem ter que matar.

– Eles chegam e violam as mães em frente dos filhos, as mulheres em frente dos maridos, as avós em frente dos netos, as crianças em frente dos pais. Todos são forçados a assistir para todos ficarem para sempre com as imagens da violência. Desmembram famílias inteiras, destroem comunidades, ferem de morte, enchem de ódio e deixam este rasto de violência por onde quer que passem.

Não poupam ninguém. Bebés, velhos e crianças, todos são vítimas. E os homens, maridos e filhos, pais e avós, ou ficam destruídos para sempre ou consumidos pelo ódio e o desejo de vingança.

O médico congolês de 64 anos que se especializou no tratamento de mulheres que foram violadas por milícias que usam a violação como arma de guerra tornou-se um dos maiores especialistas mundiais na reparação e tratamento de danos físicos provocados por violação. De acordo com a sua biografia, tratou mais de 21 000 mulheres durante os 12 anos de guerra, algumas mais do que uma vez, chegando a fazer mais de dez cirurgias por dia em turnos de trabalho de mais de 18 horas seguidas. Mais do que médico, tornou-se um grande ativista dos direitos das mulheres. E, por tudo o que observa e sabe, o maior de todos os feministas. Nós, mulheres e homens que só conhecemos estas realidades através de testemunhos mais ou menos remotos, nunca teremos palavras à altura da nossa gratidão. Também por isso esta crónica é difícil de escrever. Por ficar a anos luz daquilo que é preciso dizer e fazer.