A actual greve dos camionistas coloca pelo menos uma questão interessante: até onde é que se pode lixar democraticamente a vida dos outros? E, ao mesmo tempo, oferece-lhe uma resposta provisória: até esse direito entrar em conflito com os interesses do poder, que podem, ou não, coincidir com os interesses da maioria das pessoas. Se as greves não afectarem o poder e aqueles que directa ou indirectamente o detêm, então, como todos sabemos, constituem um direito indisputável, inteiro e universal, por mais danos que provoquem à vida de um número muito substancial de indivíduos. Se afectarem o poder, adquirem magicamente uma legitimidade apenas relativa e pronta a ser condicionada ao gosto desse mesmo poder.

Ora, a presente greve corre sem dúvida o risco de perturbar gravemente a vida de praticamente a população inteira. Mas, além disso, afectaria estrondosamente, caso fosse bem sucedida, o poder, já que o seu sucesso seria inequivocamente visto como uma perda de autoridade sem conserto possível. É claro que qualquer primeiro-ministro não aceitaria esse risco e teria de reagir energicamente. Mas António Costa não é um primeiro-ministro qualquer. Precisa, quanto mais não seja por causa da dúbia origem do seu poder, da sua “solução governativa”, de afirmar constantemente a sua autoridade. Daí ter visto a célebre “janela de oportunidades” que, antes das eleições, esta greve lhe colocava à frente para formar bem na cabeça dos portugueses a imagem dessa tal autoridade, muito apreciada entre nós, embora não sob todas as formas. E daí também ter encenado um espectáculo sem par. Como se um golpe militar com origem em Aveiras de Cima, comandado por um raivoso general, émulo de Pinochet, Pardal Henriques, procurasse subverter a ordem democrática e restaurar o fascismo. Um espectáculo que os portugueses seguem, quase de mapa na mão, ao sabor das conferências de imprensa nos telejornais, confiantes que Costa não sucumbirá ao destino de Allende.

Toda a gente com dois dedos de testa percebeu, dado o patente exagero da operação, o teatral da coisa. Ora, tudo isto é muito lindo, mas mostra várias coisas estranhas que não assinalam nada de bom. Em primeiro lugar, porque carga d’água não fez o governo tudo para evitar que a situação chegasse onde chegou? Manifestamente não o fez. Basta ouvir o representante da Antram, André Matias Almeida, para perceber que não tem tido conversas minimamente desagradáveis com o governo. E não foi certamente por faltar ao governo apetência para usar o seu poder no domínio dos privados ou por um virginal pudor nestas matérias. Em várias circunstâncias anteriores usou-o e não foi pouco. Quaisquer que sejam as razões, há aqui um indisfarçável falhanço.

Depois, nunca numa greve tão pouca simpatia se sentiu na cobertura jornalística pelas razões dos grevistas. E essas razões não são menos legítimas, longe disso, do que as da maioria das greves que regularmente perturbam a nossa vida. Pelo contrário, elas colocam em evidência o problema bem real do dinheiro que é pago àqueles trabalhadores e não conta para as suas reformas, que resultam declaradamente baixas, porque as empresas (com as suas razões) não querem pagar ainda mais impostos ao Estado. O sábio Dr. Centeno é que explicaria isto bem, se estivesse para aí virado.

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Em terceiro lugar, o PC e o Bloco aceitam tudo, com apenas umas ténues simulações de protestação, porque, primeiro, não são greves deles e, portanto, não lhes interessam, e, sobretudo, porque nada farão de consequente, em situação alguma, que os afaste da parte do poder que detêm, e essa parte depende por inteiro do PS, quer dizer, de António Costa. A artificialidade (a pura instrumentalidade) de certas crenças políticas vê-se muito bem quando a necessidade do poder nos obriga a calá-las ou, pelo menos, a transformá-las em sussurros imperceptíveis.

Por fim, o PS goza do direito extravagante de dizer uma coisa e fazer o seu contrário sem que ninguém lhe leve isso a mal. O direito à greve é absoluto e relativo ao mesmo tempo. É uma infelicidade que, por causa do papel decisivo que Mário Soares teve no combate ao PC em 1975, nos esqueçamos que (à semelhança do seu agora quase extinto congénere francês, por exemplo) ele se construiu sobre o sonho de uma democracia mais profunda, real e verdadeira do que a mera “democracia formal”, que teria assim de ser, de uma maneira ou de outra, “ultrapassada”. É essa crença, ainda hoje discernível em muita gente, que lhe dá espaço para toda a espécie de tropelias, imediatamente absolvidas pela superioridade moral que se encontra, por definição, estabelecida. Mais vale enganarmo-nos com a esquerda do que ter razão com a direita.

O que toda a atmosfera que rodeia esta greve revela é a gigantesca hipocrisia que envolve a nossa sociedade. Um governo que exagera propositadamente e da forma mais despudorada a sua acção para estrito benefício eleitoral. A extrema-esquerda que apoia o governo e que se toma de toda a prudência para dizer muito baixinho e com muitas dobrinhas e esquininhas aquilo que em qualquer outra circunstância gritaria desalmadamente. O partido do governo que obedece caninamente ao chefe, porque vê no chefe a condição essencial dos seus interesses. E todos nós, que queremos é que esta chatice acabe o mais depressa possível, independentemente da razão ou da falta dela dos grevistas.

Mas: e se tudo correr diferentemente do que o poder espera – e do que nós, por razões não totalmente coincidentes, esperamos?

Ah, e há o PSD. Há? Certos adeptos da percepção extra-sensorial asseguram que sim.