Uma família em isolamento, dia 7

O despertador toca às oito. É importante manter as rotinas e sempre é uma hora de sono a mais do que teria sem pandemia. Nos minutos de ronha até me levantar, pego no telemóvel para ver se há alguma coisa urgente e passar os olhos nas notícias.

E lá está o número no símbolo do WhatsApp: 17 mensagens novas. Já começou!

Abro a aplicação. Num dos grupos de amigos ainda há vestígios de “ah ah ah “ e corações de várias cores e polegares levantados a uma piada que alguém enviou ontem à noite. Noutro grupo já há mensagens frescas desta manhã: uma notícia do dia, duas do dia anterior, dois “bom dia alegria” e um gif de uma senhora a perguntar em que dia da semana estamos. Uma amiga enviou um documento sobre “como explicar o coronavírus às crianças”. Parece igual às dezenas de outros com conteúdos semelhantes que já recebi de várias fontes. Vou deixar para ver mais tarde.

Vou à casa de banho. As miúdas ainda dormem, a minha mulher acabou de sair para trabalhar. Enquanto preparo o pequeno-almoço, vou buscar o telemóvel. Quarenta e cinco mensagens novas no WhatsApp.

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Num grupo há uma receita nova, um vídeo do Rodrigo Guedes de Carvalho a encerrar o Jornal da Noite e imagens com frases inspiradoras. E reações respectivas. Noutro já vai animada uma discussão sobre as máscaras. “Mas nos outros países eles andam todos de máscara, só cá é que a DGS diz que não se deve usar”, diz alguém. Outro responde: “O problema é que as pessoas não as sabem usar e passam a vida a mexer nelas e isso faz pior.” Há apoiantes de um lado e do outro. Trocam polegares e corações. Eu ainda estou com sono para reagir.

Tenho pelo menos oito grupos particularmente ativos nesta rede social. E todos os dias sou adicionado a outros. Dois deles são grupos de pais (dos colegas das minhas filhas na escola), um é de antigos colegas de trabalho, outro serve apenas para partilhar pornografia (mãe, foram eles que começaram, eu quase nunca venho cá e ficas a saber que toda a gente tem grupos destes para trocar badalhoquice). Os restantes são grupos de amigos. Onde há sempre – sempre – troca de mensagens, informações, dicas, sugestões, desabafos. E muita gargalhada.

Já chorei ao ler coisas dos meus amigos no WhatsApp, já me ri até doer a barriga, já recebi coisas engraçadas de um grupo e reencaminhei para o outro – passamos a vida a fazer isto – já alertei para notícias falsas partilhadas, já combinámos jantaradas, almoçaradas, saídas, fins de semana. É por aqui que damos os parabéns uns aos outros, partilhamos as coisas dos filhos, mostramos como estamos a lidar com o isolamento, trocamos boas campanhas para compras de vinho para nos ajudar a aguentar estes dias.

A torrada está pronta. Ponho manteiga. Tiro um café. Noventa e oito mensagens novas. A malta está a acordar.

Num dos grupos de pais já se “fala” sobre os trabalhos de casa que a professora enviou. Mais um vídeo do Rodrigo Guedes de Carvalho a dar um ralhete. E outro PDF com sugestões de jogos e atividades para entreter os miúdos.

Entretanto, o WhatsApp avisa-me novamente que o armazenamento do telemóvel está quase cheio. Tenho pouca memória disponível no aparelho e, para continuar a usar a aplicação, devo libertar 100mb. Apagar outras aplicações, apagar fotografias, apagar vídeos, apagar mensagens e anexos destes grupos? Ganha a última opção. Vai à vida o vídeo de “receitas simples de massa para tempos de isolamento quando já tiver pouco atum”, o vídeo da senhora a fazer abdominais com um cão e elimino um grupo novo a que me adicionaram ontem sobre proteção a animais domésticos em tempo de pandemia.

Não chega. Isto continua entupido. Tenho de apagar as mensagens todas de um grupo. Que se dane. Em menos de uma hora isto já vai estar cheio de conteúdo novo. E repetido. Vamos a isso. Devo ter libertado uns 150mb. Ok, ganhei uns minutos sem avisos de memória.

Dou por mim a pensar que preciso de um telemóvel novo, com mais capacidade, só para poder estar descansado a receber gigabytes de informação sobre a covid-19 e a vida dos meus amigos em isolamento. Depois penso que estou apenas parvo e ainda com sono. Calma, esta loucura vai passar. Além disso, ainda bem que tenho de apagar mensagens para conseguir mais espaço. Assim como assim, eu nunca conseguiria ler tudo o que tenho aqui. Recebo muito mais informação do que aquela que qualquer pessoa consegue processar. Mesmo que esteja duas semanas de quarentena.

O Facebook anunciou há dias que duplicou a capacidade dos servidores do WhatsApp, para que a aplicação possa continuar “a funcionar de forma sólida” durante a pandemia do coronavírus, revelou o jornal Folha de São Paulo. O tráfego na rede social aumentou de forma brutal nas últimas semanas. É a esta aplicação – e ao Messenger – que muita gente recorre para se manter informada e comunicar com amigos e familiares em tempos de crise. Em Itália, as chamadas de vídeoe áudio através destas aplicações mais do que duplicaram. E, consciente disso e dos tempos que vivemos, a União Europeia pediu à Netflix para reduzir a qualidade dos vídeos da plataforma, para que a Internet não vá à vida.  E o YouTube seguiu o exemplo.

Uma das filhas acaba de acordar. Mimo, xixi, mais mimo, olhos de sono, cereais ou torrada para o pequeno-almoço, se não bebes leite tens de comer fruta, negociação qb, pouca conversa enquanto não come (sai à mãe) e finalmente a pergunta: “Enquanto a mana não acorda posso ver fotografias no teu telemóvel?” Oh diabo. E agora? Para ela ver, eu não posso continuar atualizado sobre o que se passa no mundo e nos grupos de WhatsApp. Deixa lá ver se há mensagens novas, já agora.

182 mensagens novas. O outro grupo de pais já mexe.

Atividades com crianças, outra música para cantarolar enquanto lavamos as mãos, para garantir que demoramos os vinte segundos recomendados, notícias do vírus na China, notícias de Itália, um recado de um menino para os colegas, uma proposta de horário de atividades para crianças, outro PDF com jogos para as entreter . E o Rodrigo Guedes de Carvalho, claro, seguido de corações, uma pessoa a dizer que se sente apaixonada por ele e outra a recomendar que se faça uma petição para o jornalista receber uma comenda a 10 de junho – admitindo que nessa altura já podemos sair à rua. Ainda alego à minha filha – entretanto a outra está a acordar – que estou a ver umas ideias giras de coisas que podemos fazer em casa, mas ela atira-me ao tapete: “Pai, se largares o telemóvel fazemos coisas muito mais giras.”

Que bruta, pá! Não é preciso aleijar.

Sai mais um pequeno-almoço para a outra filha, mais negociação, iogurte ou leite, banana não temos, come uma maçã que ficas bem, sim, podes ver um pouco de televisão. E vem a logística das manhãs. Louça para a máquina, ninguém fica de pijama, camas feitas, vamos à janela dar os bons dias aos vizinhos e, antes de nos sentarmos para fazer trabalhos de casa, espreito para o écran.

E vão 321 mensagens novas.

Há uma semana que as escolas estão fechadas mas a nossa prisão domiciliária dura há mais tempo. Em dez dias, graças ao WhatsApp já joguei Pictionary num dos grupos de amigos (um dos mais ativos e divertidos, por sinal), já li documentos da Ordem dos Psicólogos sobre “como comunicar a crise às crianças”, já tentei ler pelo menos cinco listas de “perguntas frequentes” sobre o coronavírus, já ouvi músicas sobre a pandemia, já cantarolei lenga-lengas sobre a lavagem das mãos, já vi dezenas de vídeos sobre o isolamento em casa. Tenho tanta informação sobre a covid-19 no telemóvel que o aparelho já não vibra, tosse (a piada não é minha, recebi-a por WhatsApp).

Daqui a pouco está na hora de fazer o almoço. Vou pousar isto por uns instantes. Ou então apago o WhatsApp até tudo passar. Depois de fazer um desmame, claro.

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