O debate à volta de um acto legislativo que torne obrigatória a vacina contra a Covid-19 traz à memória a parábola do vinho velho em odres novos. Não constituindo novidade (basta recordar a discussão de 2018 sobre o sarampo), o tema tem ganho especial destaque com o avançar do processo de vacinação nesta parte do Mundo e com o acumular dos relatos internacionais das “gigantes” como a Google, a Microsoft e o Facebook, que já impõem a vacinação a quem regresse do teletrabalho, ou de países como a Itália, a França e a Grécia que optaram por tornar a vacinação obrigatória para profissionais de saúde e/ou trabalhadores que contactem com pessoas particularmente vulneráveis, de que são paradigmático exemplo as estruturas residenciais para idosos. Perscrutando os termos do debate e as interrogações da opinião pública, pretendo contribuir para esclarecer dúvidas e mitos que se têm propalado a propósito da vacinação, em especial no contexto laboral.

O primeiro mito diz-nos que em Portugal nenhuma vacina é obrigatória, pelo que esta também não pode ser. Será verdade? Não. Isto se atentarmos no Decreto-Lei n.º 44 198, de 20 de Fevereiro de 1962, que tornou obrigatória a vacinação antidiftérica e antitetânica. Nos termos deste diploma, que se mantém em vigor na ordem jurídica, quem não estiver vacinado contra a difteria e o tétano não pode frequentar o ensino básico ou superior, fazer exames, exercer certas actividades ou ser admitido na função pública. Prevê-se, inclusive, que a polícia auxilie as autoridades sanitárias na efectivação das inoculações. Felizmente para os Portugueses, à medida que o Plano Nacional de Vacinação (PVN) se foi desenvolvendo, e fruto da generalizada adesão da população, não mais se sentiu necessidade de insistir na obrigatoriedade, pelo que as restantes vacinas que integram o PNV são, realmente, de toma voluntária.

O segundo mito crê que as vacinas obrigatórias resultam inevitavelmente em inadmissíveis violações dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em especial da sua integridade física, pelo que nunca poderiam ser aceites em sociedades democráticas onde prevaleça a liberdade individual e o Estado de Direito. Será mesmo assim? A questão é complexa e não é de resposta linear, uma vez que está em causa a ponderação de valores (ou, na gíria do Direito, de bens jurídicos constitucionalmente protegidos) em iminente colisão: de um lado, a liberdade individual, a inviolabilidade da pessoa e do corpo e o respeito pela integridade física; da outra banda, a protecção e preservação da saúde individual e da comunidade e, já agora, o normal funcionamento das nossas sociedades, tão gravemente afectadas (económica e socialmente) pelas sucessivas restrições colocadas pela contenção do SARS-CoV-2. A resolução deste conflito só se poderá fazer à luz de uma ponderação de uns e outros valores à luz de critérios de proporcionalidade, de razoabilidade e de adequação dos objectivos prosseguidos pela obrigatoriedade da vacinação e dos restantes meios disponíveis para se alcançarem esses mesmos objectivos.

Em suma, não estamos em crer que a vacinação obrigatória seja uma solução abstratamente inconstitucional para conter a disseminação da Covid-19, desde que a situação pandémica gere uma efectiva crise de saúde pública com riscos e danos significativos para a comunidade, sendo a vacinação o meio idóneo, proporcional e adequado a conter a transmissão comunitária do vírus. De outro molde, parece-nos essencial, para justificar uma norma que imponha dever de vacinar, que os níveis de adesão voluntária à inoculação sejam de tal forma baixos que coloquem em risco os objectivos de alcançar a imunidade de grupo e a contenção do vírus, o que não parece ser a realidade em que nos movemos presentemente, pelo que esta discussão não passa, para já, de uma efabulação teorética. Note-se, sem embargo, que, por força da dignidade inerente a cada ser humano, será sempre de recusar o constrangimento físico destinado à inoculação, pelo que a violação da obrigação acarreta sanções de outra ordem, sejam elas administrativas, criminais ou disciplinares.

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A constitucionalidade da vacinação obrigatória é, aliás, confirmada pelo Direito Internacional, designadamente por um Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) de 08/04/2021 (caso Vavřička et. al. v. República Checa). Nesse processo estava em causa o incumprimento, por um conjunto de famílias checas, do dever de vacinarem os seus filhos menores, o que originou a aplicação de coimas e o impedimento de as crianças frequentarem o ensino pré-escolar. Inconformadas, as famílias recorreram ao TEDH, alegando a violação do direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, na vertente de não interferência na integridade física. Em resposta, numa decisão histórica, o TEDH fez notar que a obrigatoriedade de certas imunizações visa a protecção contra doenças que acarretem um sério risco para a saúde tanto de quem recebe a vacina como daqueles que não podem ser vacinados e que ficam, por isso, dependentes da imunidade de grupo. Concluiu ainda que a interferência na integridade física colocada pelo dever de vacinar é legítima numa sociedade democrática, correspondendo a uma necessidade social premente, sendo as razões para essa interferência relevantes, suficientes e proporcionais ao objectivo a alcançar.

Mas, de acordo com o actual estado da arte em Portugal, podem as entidades empregadoras exigir que os seus trabalhadores sejam vacinados? Não… pelo menos enquanto um acto legislativo não estatuir essa obrigatoriedade. De facto, seria completamente contraproducente que os entes privados pudessem impor a obrigatoriedade da vacinação para o acesso ao emprego e exercício de uma actividade quando o próprio Estado não o faz. Questão mais sensível será, à semelhança de outros países, a imposição da vacina contra a Covid-19 para determinados trabalhadores, nomeadamente os profissionais de saúde e dos lares. No exercício das suas funções, estes profissionais encontram-se particularmente susceptíveis a colocar em risco a sua saúde, e, sobretudo, a saúde de terceiros, pelo que são razoáveis e adequadas medidas de protecção reforçadas nestas actividades. Numa situação de grave risco para a saúde pública entendemos ser possível impor a vacinação obrigatória dos profissionais de saúde, de lares e de actividades conexas, (também por via legislativa), embora tal possa acarretar potenciais questões relacionadas com a violação do princípio da igualdade e não discriminação, uma vez que distintas funções e actividades têm assumido um potencial aproximado de risco de transmissão da doença. Desta forma, impõem-se cuidados redobrados no que respeita à selecção de grupos (ainda que profissionais) para sujeição a uma obrigação de vacinação, sendo necessários fundamentos objectivos que sustentem a existência do risco e os critérios de diferenciação entre profissionais.

Questão pertinente é a de saber se uma entidade empregadora, em lugar de exigir que os seus subordinados se vacinem, lhes pode exigir que, com determinada regularidade, se testem contra a Covid-19, correndo o custo dessa testagem por conta do empregador. O Código do Trabalho é claro quando estabelece que, com raras excepções, o empregador não pode, para efeitos de admissão e permanência no emprego, exigir do candidato ou do trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos de qualquer natureza para comprovar das condições físicas para o exercício da actividade, salvo se os testes ou exames tiverem por finalidade a protecção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à actividade o justifiquem. Estando em causa um vírus com as características do SARS-CoV-2, a testagem parece ser um meio idóneo para garantir a protecção da saúde do trabalhador e de terceiros. Míster é que o empregador fundamente objectivamente essa necessidade e que os testes sejam realizados por médico, que não poderá comunicar o resultado do teste, mas somente se o trabalhador está ou não apto ao desempenho da actividade.

A eventual responsabilidade disciplinar, no âmbito juslaboral, para a violação quer de uma hipotética obrigatoriedade de inoculação, quer da obrigatoriedade de testagem, se é de admitir, como nos parece que é, merece um tratamento cauteloso, principalmente quando esteja em causa a aplicação da sanção máxima (a do despedimento com justa causa). O procedimento disciplinar não terá propriamente como fundamento a falta da vacinação ou da testagem, mas sim a violação de deveres laborais associados à segurança e saúde no trabalho e, eventualmente, ao dever de zelo e de cumprimento de ordens e directivas, podendo ainda imputar-se a adopção de condutas que violam ou colocam em risco a integridade física dos trabalhadores e de terceiros.

Como dissemos, esta discussão é, entre nós, e pelo menos por enquanto, inconsequente, na medida em que a campanha de vacinação contra a Covid-19 corre a bom ritmo, somente agora se estando a vacinar a globalidade das faixas etárias. Na data em que escrevemos, mais de 76% da população já recebeu pelo menos uma dose da vacina e quase 65% está totalmente inoculada. Porém, adivinhando-se uma diminuição do ritmo nos próximos meses e até alguma dificuldade em atingir o patamar dos 85% de imunizados, terão os decisores políticos de escolher conscienciosamente entre a técnica da cenoura ou do chicote, parecendo já claro por esta altura que a preferência é e permanecerá sendo a primeira.